quinta-feira, 31 de julho de 2008

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Bulcão, uma Burocrata


"Havia ainda uma academia, duas piscinas, uma sauna, uma vasta área recreativa para crianças e até mesmo um pequeno salão de beleza que funcionava diariamente no horário comercial, excetuando-se os domingos, naturalmente. Minha burocrata deu uma risadinha gostosa, comentou alguma coisa sobre sermos todos filhos de Deus. Foi então que uma breve pausa se impôs, durante a qual fixei toda minha atenção no som rasteiro, quase tramador, produzido pelo recontro da esferográfica com a linha pontilhada. Eis o som que seu nome faz, pensei, e isso me divertiu por uma fração de segundo. Logo em seguida, valendo-se duma sem-cerimônia estudada até não mais, e por isso mesmo cativante – tenho um fraco pelas coisas ridículas – Bulcão perguntou-me se era casado. Mostrei um dos formulários; estado civil, solteiro, o quadradinho marcado com uma diminuta gaivota, poética, a coisa toda foi terrivelmente poética."
(do conto "Guarda-Vidas")

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Uma Aventura


Houve uma explosão.

Enquanto o fogo lambia as tripas do galpão distante, uma massa ovóide de escura fumaça roçava o primeiro dos sete céus estendidos sobre nós, a humanidade. Pensei em desenhos animados.

Alguém acertou a nuca de Heitor com uma lata de aerosol e saiu correndo.

A lata caiu no chão e foi rolando até o mar, vagarosa. Heitor soltou uma praga.

Ajustei meus óculos, sorri e sentenciei: “Aqui no cais do porto é assim”.

Pode-se esperar tudo do cais do porto, menos clemência. Tudo quanto se passa por aqui é sem clemência. Não há clemência nem para vítimas nem para malfeitores, posto que estes sempre estão a apenas alguns galpões de se transformarem em vítimas de outros tantos malfeitores que espreitam silenciosamente, dentre as sombras dos cargueiros em flor. Tampouco estes vilões restarão impunes por muito tempo; breve serão vitimados também por uma nova leva de malfeitores, e a justiça do cais do porto seguirá reinando suprema. No cais do porto não há lei, meu caro Heitor – há justiça. A forma mais crua de justiça; sua configuração mais primitiva. Aqui não se transige, aqui não se barganha, aqui é o Velho Testamento.

“Por que você me trouxe aqui, então?”, indagou meu amigo.

“Os marinheiros, Heitor – os marinheiros!”

domingo, 13 de julho de 2008

Considerando o Fato Poético


o fato poético é sagrado
o fato poético não é sagrado
o fato poético é sagrado contudo
cumpre dessacralizá-lo o quanto antes
pois que de uma vez que se laiciza o fato
poético ele se escancara para todos
e todos ficam felizes quando
o fato poético se escancara
para todos o fato poético
não é nada disso

jamais chegaremos a habitar o fato poético
o fato poético é inabitável
de fato a poética
é inabitável:
junta translúcida no meio
de coisa nenhuma

diz que na lua mora um homem
no fato poético não mora
homem nenhum

o fato poético é uma república estudantil

quarto de fundos
alugado; hotel
de beira de estrada;
lanchonete de rodoviária
o fato poético pode ou não

ser nada disso.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Antes Só


I.

um dia da caça
e outro e mais outro

a era da caça

II.

vaca amarela pulou da janela
às seis em ponto chegou o rabecão
enterro no São João Batista
extremo silêncio no pasto
silêncio no pasto
silêncio!

III.

quando tem festa
lá na floresta
geralmente bebo demais
e acordo abraçado ao vaso sanitário

domingo, 6 de julho de 2008

Espionagem


SARA: Nós vivemos num estado entrópico, Mateus?
PALACE: No sentido político.
SARA: Eu não acredito que você achava que era nosso único informante.
PALACE: Bastante ingênuo da sua parte, comendador.
SARA: Bastante ingênuo, mesmo.
PALACE: Imagina, o nosso domínio do mundo, depender de um só indivíduo. Não, não. Há toda uma rede operando.
SARA: Estamos em contato constante com os altos escalões.
PALACE: Aparentemente, nós somos os favoritos, agora.
SARA: Nós recebemos as mensagens.
PALACE: Carta registrada.
SARA: Nós deciframos os códigos.
PALACE: Tá lá escrito – confidencial.
SARA: Classificado.
PALACE: Confidencial.
SARA: Segredo de estado.
PALACE: Favor não dobrar, contém fotografias aéreas.
SARA: A gente te mostraria o envelope, mas o Palace é tonto e esqueceu no quarto dele.
PALACE: Debaixo da cômoda, perto do teletipo. (para Sara) Boa menina.
SARA: Acho que a gente não precisa mais de você, Mateus.
PALACE: Estivemos conferenciando cá entre nós, e chegamos a uma conclusão meio pra lá de aterradora.
SARA: Chegamos a conclusão de que talvez você seja... perigoso.
PALACE: Um agente duplo.
SARA: Um infiltrado.
PALACE: A reação.
SARA: De modo que não precisamos mais de você, Mateus.
PALACE: Estamos por nossa conta e risco, agora.
SARA: Você segue em frente.
PALACE: Mas pode ficar descansado. Não vamos te delatar aos superiores.
SARA: Não, não temos a menor intenção de fazer isso. Chegamos até a pensar em... enviar um relatório. Mas desistimos.
PALACE: Pesamos prós e contras. Esmiuçamos a questão com muito vigor.
SARA: Pra que se envolver em mais intrigas?
PALACE: Desestabilizar a nossa frente, assim.
SARA: Não valeria a pena.
PALACE: Não queremos que você seja eliminado, afinal de contas.
SARA: Estivemos juntos por tanto tempo. Nossa aliança...
PALACE: Nós temos algum senso de lealdade. É o mínimo que podemos fazer, não é? Não promover sua eliminação.
SARA: Todo mundo comete erros, afinal.
PALACE: Se você se desiludiu da causa libertária, se você resolveu abandonar tudo, de uma hora pra outra...
SARA: A escolha é sua.
PALACE: Perdoar é divino.
SARA: Mas nós não precisamos mais de você.
PALACE: A partir de agora, você está sozinho.
SARA: Estamos por nossa conta e risco, agora.
PALACE: Você segue em frente.
SARA: Por favor, não faça essa cara. As evidências eram incontornáveis. Nós temos um dever, nós temos o dever de não contornar evidências incontornáveis.
PALACE: Não dá pra continuar com esses joguinhos.
SARA: Você sempre falava... o dever isso, o dever aquilo. Pois então. Você entende, não é? Você entende?
PALACE: Ele entende, Sarinha.
SARA: Não sei...
PALACE: Não. Ele entende.
SARA: Ele não parece estar entendendo.
PALACE: Ele está entendendo.

sexta-feira, 4 de julho de 2008