sábado, 29 de dezembro de 2007

Ele

a Tiago Santos Lima

era homem de geografia impossível. Nunca conseguimos refazer a traça de uma ação sua a um chakra específico, a traça duma sua coisa feita a seu respectivo bolsão neurótico, enfim, nunca conseguimos refazer-lhe a traça. Digamos: ele mata um vizinho a tesouradas, queremos impingir-lhe um trauma qualquer, um desses horrores da infância que nos sobem de quando em quando das masmorras sulfurosas do subconsciente e nos impelem a, por assim dizer, matar um vizinho a tesouradas. Mas não logramos êxito. Ele insiste em que não tem traumas, solamente sueños. A princípio rimos desse aparte, porque ele nos parece engraçado. Em seguida nos desconcertamos profundamente desse aparte nos ter parecido em algum momento engraçado. A coisa vai se esclarecendo em nossos espíritos, lenta porém inexoravelmente, estamos diante de figura perigosíssima. Portanto tocaiamos essa figura perigosíssima à saída do Parque Nacional. Ele segue pela rua distraído, cumprimentando a lixeiros, duques e corretores da bolsa com o mesmo aplomb, até que num beco escuro sacamos de nossas retroprojetoras e tentamos ligar seus pontinhos à força (ele é feito de pontinhos). Mais uma vez, não logramos êxito. É INCRÍVEL COMO ELE SE DESAGREGA. Jamais vimos um homem se desagregar com tamanha desenvoltura. É INCRÍVEL. Dá gosto de ver, na verdade. Mal encostamos a ponta e os pontinhos em revoada rumo ao entardecer. Por isso que quando ele decide retornar ao nosso convívio, sempre o aceitamos de bom grado. Ele é capaz de coisas das quais simplesmente não somos capazes. Bom, talvez não exatamente por isso; mas como analisar nossos sentimentos com relação a um objeto/homem que não se presta a nenhuma análise? ESTAS SÃO QUESTÕES IMPORTANTES. Não são necessariamente urgentes, mas ainda assim, meritosas da atenção de nossa comunidade. O que fazer do homem que é sem eira, beira, rima ou razão? Enjaulamo-lo como a uma borboleta rara e colorida ou deixamo-lo solto como a uma borboleta rara e colorida? Fale com seu congressista a respeito, peça sua opinião. Já não se sabe se é praga ou se é benção, se significa ou faz que é a noite inescrutável dos homens, ou quem sabe não se trata dum terrível conluio semântico do qual ninguém faz idéia? De todo modo, ele sempre foi um homem conhecido por ser imprevisível. Imagine-se o susto que levamos quando ele disse certa feita que ia lá comprar cigarros e depois – Deus meu! – voltou.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Strike Up The Band




Hoje tem show d'Os Subterrâneos, colectivo musical-paranóide que fronteio há quaisquer anos, lá no Maze Inn, mais conhecido como Parangolé do Bob Nadkarni. Fica no alto da Tavares Bastos. Você faz assim: chega na esquina da Bento Lisboa com a ladeira da supracitada Tavares Bastos, toma a ladeira, sobe a ladeira, quando a ladeira acabar você enfia pelo ajuntamento de casas e segue andando mais um pouco. Qualquer coisa, é perguntar pra qualquer um pela casa do Bob -- é batata. Estaremos em ótima companhia, por sinal: a 3a1, a Café Funquê e Os Pedros também se apresentam, seja, tem tudo pra ser bonito pra dedéu. Vá lá, confira.


Rua Tavares Bastos, 414/66

com as bandas: 3a1, Café Funquê, e Os Pedros

R$ 5 até 22h

R$ 10 até 0h

R$ 15 depois de 0h


E falando em conferir, nosso novo single (versão aloprada de "Carcará", de João do Vale e João Cândido) já está disponível no myspace.com/ossubterraneos -- em podendo, pegue, mate, come.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Hilda


"De muito pequena Hilda aprende que Deus é lugar – nem gente nem coisa. Isso lhe dá alguma confusão, o que é natural, ser pequeno é sempre e forçosamente um baralhamento louco de tudo que se apresenta. Mas à guisa de exemplo: um irmão de seu pai mora em Curitiba, num bairro chamado (!) Cristo Rei. E mais adiante, questões de paternidade: se a tia (que é quem mais lhe fala nessas coisas) insiste em que todos são nascidos de Deus (que é, como já se disse, um lugar), então por que todo esse alarde em torno de Jesus? Judiaram dele um bocado, isso se entende; lá na cruz fez frio, fome, sede, sem falar nas pancadas que ele apanhou na Rua Crucis, que era caminho pro Monte Sinai. De fato, tanto fizeram que ele acabou morrendo. Mas! Uma reviravolta (Murilo acha essa palavra estúpida). Ele desmorre, faz questão de desfilar por aí e mostrar pra todo mundo (isso lá pela Páscoa), o que parece ter causado certa espécie. Não obstante, fogos de artifício, porque ele (ao que lhe consta) só voltou pra dizer que estava de parte outra vez."
(do conto "Hilda")

Mundo Como Vitral Partido


dentro em que pese
a rédea solta
é costume eu falar bem lento
comigo mesmo

(talvez por isso mesmo
não me quero dar ao susto)

é costume eu falar bem lento
contra o que me em-puxa
a tantos ventos
cidade fora
que eu já nem sei se a persigo
ou se é ela que vem rugindo
atrás de mim rugindo
essas coisas duras de asfalto
e que também são luz

nenhum cantar possível de poste?

pois eu aqui falo lentíssimo
aqui ao que me faço
(uma delicada
arquitetura de álbuns)
e as palavras bem miúdas
não do que trazem mas de si

domingo, 16 de dezembro de 2007

Ícaro


ali
avenida primeiro de março
estropiado entre buzinas e gritos
de todas as gentes
que larguei mão do sol
pra recomeçar a Terra.

Adília Lopes


"Preocupa-me ser precisa, exacta, falar verdade e estar viva."
(Adília Lopes)

domingo, 9 de dezembro de 2007

Synchronoscopio


Se penso meu próprio discurso poético como gadget de tornar a experiência do mundo una, apresso-me em dizer sempre, logo em seguida, que meu maior interesse reside nos desastres da máquina. Não que seu sucesso me seja indiferente. Há inspiração e a vontade de cantar – há afeto, creio eu, que ultrapassa o campo do cenográfico. Os brevíssimos desvelamentos em linguagem que hoje em dia fazem às vezes das grandes epifanias de ordem transcendental. Mas é preciso entender o risco, isso nem sempre é possível; desiludir-se da magia da linguagem, e estar real; entender, de uma vez por todas (isso me digo) que não há fórmula, nem oração, nem nada que restitua à linguagem sua translucidez. O mundo como complexa rede de relações, o que se ambiciona e o que se frustra, acima de tudo, o reino impenetrável do que não se prevê. Tudo isso está contido num dia, e meu poema circunscrito nele. O dia está contido no mundo que está contido no tempo; meu poema circunscrito em ambos. Tomo de empréstimo um pedaço do mundo e acredito que ele contém qualquer coisa de significante, urgente, mensagem. Para quem? Não, não é possível que a linguagem torne a significar com a mesma justeza teogônica de outrora, a História não o permite. Como validar essa impossibilidade, extrair dela um projeto, uma direção, um norte?
O herói morreu, vida longa ao herói.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Os Cigarros


oscigarrosseencadeiam

um depois do outro esse
que acabo de puxar do maço
pega-se à brasa do que vai terminando
(as mãos) fazem cordão de fumo
que isola a cena do crime e daqui
não passa ninguém (pedem asilo)