Chove muito no bairro novo, meu parecer sobre a forja dessas cartinhas continua desfavorável, na verdade, torna-se cada vez mais desfavorável com o passar dos anos, de uns tempos para cá tenho, de fato, achado essa coisa de escrever cartas ato não apenas imbecil, como moralmente aviltante, fiz questão de banir todas as correspondências completas da minha biblioteca, de modo que algo muito próximo do pânico me toma por inteiro sempre que me pego formulando essas cartinhas mentalmente, quando as palavras se rendem a uma vil arquitetura para o outro, tão comprometida com a idéia do outro que não pode ser qualificada de qualquer outra coisa que não vil, uma vileza, enfim, um ultraje, a olaria começa a deitar fumo pelas chaminés e vão se excretando blocos e mais blocos de tentar comunicar qualquer coisa a alguém e onde já se viu noção mais adolescente?, mas aludo ao processo mental, tão-somente, quando constato que a caneta já está entre os dedos e noto que assumi aquela postura aleijona pela qual sou conhecido – o torso troncho, o braço enveredado feito galho em desespero de sol – no ato de escrever, essa coisa muito próxima do pânico torna-se terror absoluto, posto melhor, absolutiza-se em terror, não sobra margem para coisa alguma, e neste caso, em que nada me agradaria mais do que ser paralisado (detido, de alguma maneira), curiosamente – amaldiçoadamente – o terror não me paralisa, eu que me impeço pelas coisas mais sem significância, uma voz do outro lado da parede me constrange à completa inação (pensei hoje em escrever um conto sobre um homem que sofre um derrame ouvindo a vizinha de porta gemer durante o ato sexual), eu e meu nervosismo pequeno-burguês, perene, eu que sempre me achei – de través – destinado a parar, parar a priori, um homem que pára, eu que sempre me inclinei tanto a definir-me como um homem que pára, não consigo parar de escrever estas malditas cartinhas que são, em suma, para você, não têm sequer a dignidade das coisas que se encerram em si, folhas e mais folhas partindo dessa premissa tola – e como já disse, beirando o imoral – de que o outro me iça do nada, lendo minhas palavras, o outro me põe no ser como se põe um bebê na incubadora depois daquele primeiro banho de sangue e isso se dá só pela leitura de minhas palavras, minhas palavras para o outro – minhas palavras! a própria colocação me faz um frio na base da espinha – minhas palavras para você – e gostaria de fazer meia-volta e acreditar que, pelo menos, isto é bravura, sim, uma mostra de coragem, assumir que essas palavras não existem sem destinatário – se fracassei tão ruidosamente na demolição dum conceito de destino, por que não haveria de fracassar de maneira igualmente ruidosa na demolição dum conceito de destinatário? – mas a questão é que não consigo, não consigo pensar nessas cartinhas senão como uma rendição, uma sórdida desistência de estar em mim e ver minhas mãos – e entender minhas mãos – meus olhos – meus processos mentais – a desgraça completa dos meus processos mentais – e precisar chamar ao outro para ser, como quem pede permissão para deixar a classe e ir ao banheiro, por que não levantar-se e ir, ou pelo menos molhar as calças e mostrá-las ao professor sem nenhum – repito, nenhum – vestígio de vergonha?, as cartas são a queda, não que esteja tratando de algo previamente soberano, algo – alguém – que, em algum momento, não esteve caído, mas mandar notícias desse estar caindo, esse estar caindo que faz a distância inteira entre nascimento e morte, isto me parece demais, até porque não é tão brando quanto simplesmente mandar as novas a alguém, estou te escrevendo para te mandar às novas, estou te mandando às novas, quentinhas, como as labaredas do inferno, e no entanto, não sou capaz – não tenho nem a grandeza de espírito de, reconhecendo-o, simplesmente parar – as palavras não tem uma vida própria, eu não ousaria dizer isso, eu não ousaria afirmar que me chegam, somente, e tudo isto é inevitável e portanto mereço ser escusado, não mereço ser escusado, penso mesmo em te escrever para te advertir – nunca me desculpe nada – nunca, nunca me desculpe nada – minha fraqueza, minha total incapacidade de harmonizar teoria e prática – talvez assim eu aprenda qualquer coisa, talvez assim você aprenda qualquer coisa, você já me disse, certa feita, que minhas cartas eram um desconcerto justamente porque eu despejava tudo que me corria no peito sem a menor consideração por quem lê, que uma carta não é literatura, a literatura é impessoal, a escritura da carta configura um ataque – sim, é esta a palavra mais apropriada – de caráter definido, escolhemos uma pessoa, uma única pessoa no mundo para alvejar, rajamos nessa pessoa um canil de minúcias e pensamentos e informações de todo imprestáveis, e o que faz essa pessoa – esse infeliz, esse estuprado – com isso? responde? há isso também, carta não é coisa que se responda, toda carta é uma carta, uma primeira carta, acreditar na linearidade da correspondência é monstruosamente ingênuo, as coisas se interrompem, não há réplica possível, é um complicado jogo de espelhos – um complicado ataque de espelhos – que vão fazendo gestos feios uns para os outros mas ninguém está lá, ninguém está lá de fato, são apenas reflexos, reflexos que fazem gestos feios inutilmente, isto é na base do insultar-se, a imposição da presença, a imposição da nossa imprecisão, nossa desrazão, nosso horror, que acaba culminando nisto, neste ato de esporar o outro com um sachezinho de si próprio, um fio de cabelo, uma pegada, uma três por quatro, leves recriminações numa pátina de mel e suspiros nostálgicos – e o que é a nostalgia senão uma grande recriminação? – e se estou te escrevendo agora, esteja certo de que estou completamente atinado com o que digo, e continuarei atinado com o que digo enquanto selar o envelope, mesmo ao tomar o rumo da agência postal mais próxima, onde, logo antes de entregar a carta nas mãos do funcionário, pensarei se não será desta vez, se não será desta vez que conseguirei pôr fim a estas ofensivas de uma vez por todas, basta tomar a carta de volta, dizer que mudei de idéia, que falta qualquer coisa, que volto mais tarde, que nunca mais volto, que preciso deixar a classe e ir ao banheiro, mas acabarei não só enviando a porcaria da carta como pagando a mais pelo registro do envio, e colocarei o comprovante na carteira e a carteira no bolso de trás e o bolso de trás entre a bunda e o assento da cadeira do meu escritório enquanto redijo – o quê? – mais dessas maravilhosas CARTAS, para você, só para você, CARTAS!, pois sim, esteja certo, estou te recriminando, estou fazendo gestos feios – posto melhor, meu reflexo está fazendo gestos feios – eu estou apenas escrevendo – e sei que não haverá resposta, apenas mais uma sucessão de gestos feios, de perguntas retóricas, de saudações e votos dum viver tranqüilo e suave e um arsenal bastante vário de golpes de teatro, inclusa sua ironia, quase tão rudimentar quanto suas tentativas de mostrar-se carinhoso e preocupado com minha situação atual, e assim será até que um de nós morra definitivamente para a lógica epistolar, provavelmente você, você já está bem cansado de mim – garanto que não tanto quanto eu – e eu rezo para que você não responda, para que você fique calado, para que você não me force a mais uma dessas terríveis cartinhas que não consigo parar de escrever, ou que pelo menos me mande uma folha em branco, uma folha em branco sem palavra que a fira e a faça sangrar a própria inutilidade, pelo menos isso, que você me mande uma folha em branco e queira dizer com esta folha em branco que finalmente entramos em acordo, e nos emparelhamos, e nos deixamos devorar, afinal, pelo tanto que nunca entendemos nem nunca jamais entenderemos, ou porque ruímos, ou porque ruíram as próprias palavras, e se somos palavras e pouca coisa além, porque toda a construção foi abaixo, restando apenas uma ou outra gota sobre o toldo do vizinho e o sol se arrastando por detrás das montanhas, exausto, nem por isso menos implacável.
sábado, 30 de agosto de 2008
Cartas
Chove muito no bairro novo, meu parecer sobre a forja dessas cartinhas continua desfavorável, na verdade, torna-se cada vez mais desfavorável com o passar dos anos, de uns tempos para cá tenho, de fato, achado essa coisa de escrever cartas ato não apenas imbecil, como moralmente aviltante, fiz questão de banir todas as correspondências completas da minha biblioteca, de modo que algo muito próximo do pânico me toma por inteiro sempre que me pego formulando essas cartinhas mentalmente, quando as palavras se rendem a uma vil arquitetura para o outro, tão comprometida com a idéia do outro que não pode ser qualificada de qualquer outra coisa que não vil, uma vileza, enfim, um ultraje, a olaria começa a deitar fumo pelas chaminés e vão se excretando blocos e mais blocos de tentar comunicar qualquer coisa a alguém e onde já se viu noção mais adolescente?, mas aludo ao processo mental, tão-somente, quando constato que a caneta já está entre os dedos e noto que assumi aquela postura aleijona pela qual sou conhecido – o torso troncho, o braço enveredado feito galho em desespero de sol – no ato de escrever, essa coisa muito próxima do pânico torna-se terror absoluto, posto melhor, absolutiza-se em terror, não sobra margem para coisa alguma, e neste caso, em que nada me agradaria mais do que ser paralisado (detido, de alguma maneira), curiosamente – amaldiçoadamente – o terror não me paralisa, eu que me impeço pelas coisas mais sem significância, uma voz do outro lado da parede me constrange à completa inação (pensei hoje em escrever um conto sobre um homem que sofre um derrame ouvindo a vizinha de porta gemer durante o ato sexual), eu e meu nervosismo pequeno-burguês, perene, eu que sempre me achei – de través – destinado a parar, parar a priori, um homem que pára, eu que sempre me inclinei tanto a definir-me como um homem que pára, não consigo parar de escrever estas malditas cartinhas que são, em suma, para você, não têm sequer a dignidade das coisas que se encerram em si, folhas e mais folhas partindo dessa premissa tola – e como já disse, beirando o imoral – de que o outro me iça do nada, lendo minhas palavras, o outro me põe no ser como se põe um bebê na incubadora depois daquele primeiro banho de sangue e isso se dá só pela leitura de minhas palavras, minhas palavras para o outro – minhas palavras! a própria colocação me faz um frio na base da espinha – minhas palavras para você – e gostaria de fazer meia-volta e acreditar que, pelo menos, isto é bravura, sim, uma mostra de coragem, assumir que essas palavras não existem sem destinatário – se fracassei tão ruidosamente na demolição dum conceito de destino, por que não haveria de fracassar de maneira igualmente ruidosa na demolição dum conceito de destinatário? – mas a questão é que não consigo, não consigo pensar nessas cartinhas senão como uma rendição, uma sórdida desistência de estar em mim e ver minhas mãos – e entender minhas mãos – meus olhos – meus processos mentais – a desgraça completa dos meus processos mentais – e precisar chamar ao outro para ser, como quem pede permissão para deixar a classe e ir ao banheiro, por que não levantar-se e ir, ou pelo menos molhar as calças e mostrá-las ao professor sem nenhum – repito, nenhum – vestígio de vergonha?, as cartas são a queda, não que esteja tratando de algo previamente soberano, algo – alguém – que, em algum momento, não esteve caído, mas mandar notícias desse estar caindo, esse estar caindo que faz a distância inteira entre nascimento e morte, isto me parece demais, até porque não é tão brando quanto simplesmente mandar as novas a alguém, estou te escrevendo para te mandar às novas, estou te mandando às novas, quentinhas, como as labaredas do inferno, e no entanto, não sou capaz – não tenho nem a grandeza de espírito de, reconhecendo-o, simplesmente parar – as palavras não tem uma vida própria, eu não ousaria dizer isso, eu não ousaria afirmar que me chegam, somente, e tudo isto é inevitável e portanto mereço ser escusado, não mereço ser escusado, penso mesmo em te escrever para te advertir – nunca me desculpe nada – nunca, nunca me desculpe nada – minha fraqueza, minha total incapacidade de harmonizar teoria e prática – talvez assim eu aprenda qualquer coisa, talvez assim você aprenda qualquer coisa, você já me disse, certa feita, que minhas cartas eram um desconcerto justamente porque eu despejava tudo que me corria no peito sem a menor consideração por quem lê, que uma carta não é literatura, a literatura é impessoal, a escritura da carta configura um ataque – sim, é esta a palavra mais apropriada – de caráter definido, escolhemos uma pessoa, uma única pessoa no mundo para alvejar, rajamos nessa pessoa um canil de minúcias e pensamentos e informações de todo imprestáveis, e o que faz essa pessoa – esse infeliz, esse estuprado – com isso? responde? há isso também, carta não é coisa que se responda, toda carta é uma carta, uma primeira carta, acreditar na linearidade da correspondência é monstruosamente ingênuo, as coisas se interrompem, não há réplica possível, é um complicado jogo de espelhos – um complicado ataque de espelhos – que vão fazendo gestos feios uns para os outros mas ninguém está lá, ninguém está lá de fato, são apenas reflexos, reflexos que fazem gestos feios inutilmente, isto é na base do insultar-se, a imposição da presença, a imposição da nossa imprecisão, nossa desrazão, nosso horror, que acaba culminando nisto, neste ato de esporar o outro com um sachezinho de si próprio, um fio de cabelo, uma pegada, uma três por quatro, leves recriminações numa pátina de mel e suspiros nostálgicos – e o que é a nostalgia senão uma grande recriminação? – e se estou te escrevendo agora, esteja certo de que estou completamente atinado com o que digo, e continuarei atinado com o que digo enquanto selar o envelope, mesmo ao tomar o rumo da agência postal mais próxima, onde, logo antes de entregar a carta nas mãos do funcionário, pensarei se não será desta vez, se não será desta vez que conseguirei pôr fim a estas ofensivas de uma vez por todas, basta tomar a carta de volta, dizer que mudei de idéia, que falta qualquer coisa, que volto mais tarde, que nunca mais volto, que preciso deixar a classe e ir ao banheiro, mas acabarei não só enviando a porcaria da carta como pagando a mais pelo registro do envio, e colocarei o comprovante na carteira e a carteira no bolso de trás e o bolso de trás entre a bunda e o assento da cadeira do meu escritório enquanto redijo – o quê? – mais dessas maravilhosas CARTAS, para você, só para você, CARTAS!, pois sim, esteja certo, estou te recriminando, estou fazendo gestos feios – posto melhor, meu reflexo está fazendo gestos feios – eu estou apenas escrevendo – e sei que não haverá resposta, apenas mais uma sucessão de gestos feios, de perguntas retóricas, de saudações e votos dum viver tranqüilo e suave e um arsenal bastante vário de golpes de teatro, inclusa sua ironia, quase tão rudimentar quanto suas tentativas de mostrar-se carinhoso e preocupado com minha situação atual, e assim será até que um de nós morra definitivamente para a lógica epistolar, provavelmente você, você já está bem cansado de mim – garanto que não tanto quanto eu – e eu rezo para que você não responda, para que você fique calado, para que você não me force a mais uma dessas terríveis cartinhas que não consigo parar de escrever, ou que pelo menos me mande uma folha em branco, uma folha em branco sem palavra que a fira e a faça sangrar a própria inutilidade, pelo menos isso, que você me mande uma folha em branco e queira dizer com esta folha em branco que finalmente entramos em acordo, e nos emparelhamos, e nos deixamos devorar, afinal, pelo tanto que nunca entendemos nem nunca jamais entenderemos, ou porque ruímos, ou porque ruíram as próprias palavras, e se somos palavras e pouca coisa além, porque toda a construção foi abaixo, restando apenas uma ou outra gota sobre o toldo do vizinho e o sol se arrastando por detrás das montanhas, exausto, nem por isso menos implacável.
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