terça-feira, 16 de outubro de 2007

O Vago Parente


"O cantor de quiosque é um bicho notável. Habita névoa, sereno e cadeiras de plástico. Vive de hits do momento e êxitos incontornáveis. Meu vago parente parecia levar isso muito à risca: traduz-se, um repertório de mocinhas de pouca conseqüência, rotativas – e o folclore irrecorrível do primeiro amor. No meio desse parangolé todo, havia esposa e duas filhas. Jazia esposa, duas filhas. Como era de se prever, cansaram e deram no pé, em grande estilo. Isso foi em Niterói, isso foi há muito tempo atrás, isso foi o primeiro divórcio. Agora meu vago parente anda no terceiro. Perdeu a voz, abalofou, ficou grisalho, voltou pra casa da mãe -- dá telefonemas de madrugada e vive de fazer empréstimos pra velhinhos. Falta pouco para que se torne um velhinho ele-mesmo, mas pelo mancar da carruagem, talvez nem chegue a tanto. Ele coloca a garrafa vazia de Sangue de Boi atravessada na pia enquanto adoço meu café, nossas pegadas se fundem sem encontro. De vez em quando ele tosse de madrugada, parece que vai vomitar, espero do meu quarto o passo corrido até o banheiro que somos forçados a dividir o resto do dia (nossas toalhas em extremos opostos do cômodo, etiquetadas), nada, não sei nada dos barulhos que ele escuta quando há gente aqui no quarto, de vez em quando eu bebo demais e surge alguém, de vez em quando eu bebo demais e não surge ninguém."

(outro trecho de "Todo Mundo, ou Novas Possibilidades Para Uma Fossa Insublimável")

Um comentário:

Anônimo disse...

Me avise quano surgir sem que você tenha bebido. Não é isso que diferencia a vida dele de ser vivida e não só sobrevivida? Os sentimentos, acontecimentos e emoções? Não importas se são boas ou más, é o que fez ele viver, se importar. Para ser casado, amou. Para ser pai, gozou. Para estar doente, sauldável já foi... e assim foi e vai também a história de quem vai mais além de sobreviver...