quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Duílio (parte de um monólogo)


"Eu estou sendo vago, agora, mas é só porque estou sendo sincero, sinceridade e objetividade são coisas INTEIRAMENTE diferentes. A maior parte das mentiras que a gente joga no mundo é de uma objetividade massacrante. Eu acho que você devia me escutar bem. Eu estou sangrando isso tudo na sua camisa branca, porque de repente me parece certo que eu sangre tudo na sua camisa branca, de repente me parece absolutamente necessário que você SE ARREPENDA JUNTO COMIGO. Eu tenho direitos, eu tenho direitos e você sabe disso! Se eu nunca reclamei, é porque sou covarde. Eu me arrependo, eu quero que você entenda que eu me arrependo, da maneira mais amarga, de não ter reclamado MEUS DIREITOS quando isso ainda parecia possível, agora é tarde demais. TARDE, você me compreende? VOCÊ ESTÁ ME ESCUTANDO? Isso tudo é uma grande mentira e uma decepção ainda maior. (um pouco mais calmo). Uma decepção de proporções tsunâmicas, eu diria (ri levemente de si para si). Não existe amor, existe o ato do amor, de onde ele vem, ou por quê, não tem como saber, é um jogo de adivinhar. Há suspeitas, entretanto. HÁ SUSPEITAS. Quem diga que o Homem é a forma mais pura do desamparo, que tudo que fazemos um pelo outro é caridade, é filantropia irrefletida, que esse desespero de alívio e proteção pode fazer com que pessoas passem uma vida inteira juntas mas amor, AMOR -- qual é o espaço disso? Será que alguém no mundo ainda se leva tão monstruosamente a sério, será que alguém no mundo ainda confia tanto em si mesmo a ponto de dizer sim, eu estou amando, eu amo, eu amei? (...) EU AMO. A gente precisa disso, alguém me disse que eu preciso disso, então eu preciso disso, amor... (recitativo, irônico) estamos fuçando um lote de abstrações, meu bom jovem, uma capitania hereditária, o legado da necessidade suprema... ou qualquer coisa assim. (...)(esquentando) Você parece tão cansado. DE QUÊ, PORRA? Não de mim, certamente, eu estou me colocando a nu na sua frente pela primeira vez, eu estou fazendo esse vaudeville todo só pra você, você NÃO PODE ESTAR CANSADO DE MIM. (...) Foi um instante, eu me deixei convencer de que amava – VOCÊ – só agora COM TUDO CAINDO AOS PEDAÇOS eu entendo, só depois do bombardeio, só depois da chacina, ou pelo menos, SUPONHO que entendo. Meu Deus..."
(trecho de "Abecedário", roteiro que estou aprontando para um amigo)

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