sábado, 31 de maio de 2008

Iconografia


aqui Vera em Hamburgo;
no verso da ruela de pedrinhas
– uns prédios mínimos de tijolo
calçada estreita claridade ao longe
sugere-se uma praça –
vai a data em esferográfica azul
janeiro de 67, o 7 ela
não cruza, dueto para dois traços
traindo certa impaciência
como que um 7 em fugir-se
para o algarismo seguinte

uma operação matemática
bastante simples dá conta
dos anos que Vera tinha ao tirar-se
esse retrato, esse retrato como que
prenda do nada, tão discreto,
esse retrato como que pacto
ou selo dum pacto, absoluto sigilo
quanto ao encontro que o trouxe à baila,
como que surgido de lugar algum,
esse retrato que hoje se toma – se,
abrindo uma gaveta, damos por ele;
se, atrás de papéis para deitar fora, damos
por ele, no fundo de uma
gaveta – por espontâneo, surgido
de lugar algum, como que prenda do nada,
retrato que tem seu termo lá
onde dizemos, ou movemos os lábios
difíceis sem produzir espécie alguma
de som, Vera esteve em Hamburgo
era janeiro de 67. Uma operação
matemática bastante simples dá conta
dos anos que Vera tinha ao tirar-se
esse retrato, Vera tinha 17 anos,
o grosso casaco cintado que leva sobre
o corpo era, a bem da verdade, de seu avô,
Vera teve de levá-lo à costureira
semanas antes de tomar o navio
para ajustar a peça, minguá-la até
que fizesse sentido sobre si, e isto é caso
de não perceber, assim que pegamos
a vista do retrato, o que vai lá de mais velho
é o rosto de Vera, sem sombra de
dúvida – ela conta tantos anos de rosto
neste retrato que não se sabe
de onde subtrair-los.

aqui Vera no apartamento
que dividia com Cynara, na Glória, no verso
do rosto de Vera, vai a data em esferográfica
preta, setembro de 78, um borrão
torna a segunda sílaba da palavra
setembro ilegível, mas havendo
uma primeira e uma terceira, perdoa-se
o borrão, entende-se – e era
setembro, assim como passamos
sem paisagens de outono
faixas de pedestre pintalgadas
de folhas
mortas; neste retrato, um outro, os cabelos
de Vera bastante longos, maranha mitológica
óculos de sol bolsa a tiracolo
o rosto lavado
branco de segredos
sem o menor aviso ela sorrisse

que é o caso deste outro retrato
aqui
ancorado num tempo que é junho
de 86 (este 8 é calmo), que os cabelos encurtaram
e tomaram sobre si muitas
voltas, ela no meio da rua ela
no meio da rua ela parada no meio da rua
no dia em que se mudou para
o apartamento na Leopoldo Miguez
onde foi ficando
onde foi se deixando ficar
ficando ficando
até onde deu

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