domingo, 28 de setembro de 2008
Beira de Domingo Chuvoso
perco as chaves do dia
quero atear fogo
à lixeira
o isqueiro acabou
eu me engasgaria
dos meus próprios sinais de fumaça
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Introdução ao Baile
"Quem são as pessoas que você realmente ama? Quem são as pessoas que não te fazem nenhum medo? Que não te fizeram medo nem no princípio, lá onde tudo deve, forçosamente, ser medo? Quais as pessoas que ainda não te partiram a cara em duas? Que não te acertaram um uppercut enquanto acenavam, distraídas, para o garçom? Por quem você esperaria num parque, numa manhã de inverno, com o mundo inteiro em volta exigindo explicações? Quem? Quais?"
(do conto "Introdução ao Baile")
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
Eu e Minha Analista Numa Ilha Deserta
Evito dizer certas coisas à Dra. Janice porque, depois de tantos anos de tratamento, já não me parece direito demonstrar certeza nem do pouco que tenho certeza. Certamente, nesse estágio de nosso relacionamento, afirmar qualquer coisa – sim, qualquer coisa – equivaleria a interromper o mais delicado foxtrote do Universo e sair enfiando a mão por dentro da saia de minha parceira, um faux pas agigantado a proporções atômicas, impensável, absolutamente impensável que depois de tantos anos de intenso convívio (3 sessões semanais), criamos, afinal, nossa própria Terra do Nunca Semântica, conseguimos uma codificação tão própria, tão inchada de ambivalências, que, mesmo depois desse tempo todo, Dra. Janice ainda não sabe de meus (maus) hábitos etílicos, nem eu faço muita idéia de que linha ela segue (por exclusão – Reich não, Lacan idem – chego à hipótese de Freud com uma pitada de Jung aqui e acolá), o que acontece então, e com certa freqüência, é ir-me tateando no longo de nossos encontros até dar no mais fino estado de abstração mental (não sei se existe outra espécie de abstração – espiritual, talvez? desenvolver), fico epifânico, chego a incorrer linguisticamente em dialetos extintos, depois caio no chão e fico lá inerte por alguns instantes, sacudido vez ou outra por espasmos, e em tornando a mim, bom filho que sou, olho para o lado e descubro Dra. Janice imóvel em sua poltrona, calculo que se manteve imóvel durante todo o acontecido (que controle!), e ela me parece toda uma ambiência moralizante e reta, consumida pela maciez de sua poltrona de couro, vista entre as patas da raposa empalhada sobre a mesinha de centro, não há nada a fazer senão erguer-me, apertar sua mão, e dar-lhe as devidas congratulações, louvando-lhe a força e a seriedade em seu trato comigo, seu trato comigo de tantos e tantos anos, e então ela diz que estamos fazendo um ótimo trabalho, todo esse tempo, um ótimo trabalho mesmo, um progresso verdadeiramente arrebatador, e ela sorri e pisca o olho direito, e eu sorrio de volta piscando o olho esquerdo, marchamos lenta porém inexoravelmente aos limites do símbolo.
sábado, 20 de setembro de 2008
Aos Ossos Que Tanto Doem No Inverno
Hoje (domingo) é o último dia da re-temporada de “Aos Ossos Que Tanto Doem No Inverno”, lá em Sampa. A peça é do grande Sergio Mello, e a direção é de Soledad Yunge.
O entrecho se recusa. A experiência é o que conta. Todo mundo tão entregue, todo mundo tão lá, não dá pra perder.
Toda a gente ali é colossal.
Aqui no Rio, é cruzar os dedos e esperar o pessoal chegar, chacoalhando algum castiço Sesc da vida.
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
Função de Fuga
ah, ser jovem
ser poeta e jovem
e remexido
num caixote de feira
interestadual (semi-leito
de morte?) e ah,
ter defronte de si
nada além dum pé pelado
de serra
e as ancas
monumentalmente paradas
deste velho caminhão
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
Baldeação
sempre que em trânsito
a mente não consegue tomar o partido
nem dos romances passageiros
nem dos reconhecimentos de vida fora
julga todas as crianças
de alguma forma
perdidas
lembra da Veronika Voss
dizendo algo como toda a gente
fica mais bonita quando se despede
repara numa das bodegas da Rodoviária
chama-se Viajantes
acha isso poético
então mete isso num poema
torcendo para que isso se torne
de alguma forma
poético para os outros também
é difícil escrever de dedos cruzados.
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tem figura? só gosto de livro com figura
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
São Paulo!
Alô, alô!
Você ligou pra Alice e pro Ismar. No momento estamos fazendo as malas. É que vamos para São Paulo lançar nossos livros ("Dobradura" e "Synchronoscopio"). Vai ser nessa sexta, dia 12 de setembro, na Mercearia São Pedro. Fica na Vila Madalena, Rua Rodésia, 34. Começa às 20h. Esperamos você lá!
Bip!
Você ligou pra Alice e pro Ismar. No momento estamos fazendo as malas. É que vamos para São Paulo lançar nossos livros ("Dobradura" e "Synchronoscopio"). Vai ser nessa sexta, dia 12 de setembro, na Mercearia São Pedro. Fica na Vila Madalena, Rua Rodésia, 34. Começa às 20h. Esperamos você lá!
Bip!
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583
nenhum de nós é feito, penso
pássaro
voar é sonho baixo
um besouro manco
percorre a passo
a janela – planície
ensolarada – do 583
e eu
e tudo é súbita
correspondência da palavra
espera; um sol que vai alto
de tontear os romeiros;
o dia, a ordem
do dia
via headphones
esperemos.
domingo, 7 de setembro de 2008
sábado, 6 de setembro de 2008
Poema Que Lars Stephan Nunca Vai Ler
(isso é o Lars Stephan. ele tira fotos de si próprio. como vocês podem reparar, ele é bastante bonito, e ele parece sofrer uma consciência agudíssima de ser tão bonito. abaixo, um poema leviano escrito em sua homenagem, que eu posto aqui única e exclusivamente porque minha rumeite está escutando "In a Sentimental Mood" e hoje é meu aniversário, e estou me sentindo indulgente, como quem faz carreira de tirar fotos de si próprio)
se o ano é mil novecentos e cinqüenta e dois e sou um para-quedista prestes a saltar dum avião e à soleira desse céu azul e gáseo eu berro – dando guerra a esse céu azul e gáseo – ANTÍNOO!
e salto. É bem possível
que eu me esborrache. Você não devia
ficar peregrinando por aí como se a beleza
fosse coisa tão nova. Não se deve negar
à beleza uma história. Um passado.
Por que você fica saltando de país em país
como se a beleza fosse boletim divulgado
semana passada? Que empáfia
você vai me beijar agora? Não? Olho para minhas sandálias
olho para a ponta do meu dedão coço a virilha
discretamente. Você vai me beijar
agora? A beleza não é coisa assim tão nova.
Campear a própria beleza não é coisa assim
tão nova. Veja esse postais. Veja esse polígono. Veja That Boy,
com o Peter Berlin. Você
balão o hélio de sua própria beleza, será
sua voz idêntica a daqueles esquilos de desenho animado?
Você me entoará, com voz de esquilo de desenho
animado, vou te beijar agora? Você sobreviverá
ao advento do cinema falado?
Eu acendo velas aromáticas peço um
jantarzinho frugal no restaurante aqui do lado
finjo que passei horas escravizado na cozinha – e agora
você vai me beijar? Eu estou tão feliz eu estou tão feliz
gasto meio rolo de papel-toalha enxugando as lágrimas
eu sou pobre e, como você já deve ter reparado, não há
um espelho sequer nessa casa. Não há um espelho sequer
nessa casa. Pare de procurar.
Você é tão bonito eu quero jogar lírios caixotes e garrafas meio cheias de vinho
em você quero esconder suas roupas e te apresentar à minha bisavó Carmen
quero que você descubra a pistola escondida debaixo do meu travesseiro
e chore e peça que eu vá a um psiquiatra.
Agora, só me apareça aqui de novo quando o café estiver pronto. Não, a beleza não
é coisa tão nova assim. A certos ângulos, ela é até bastante vulgar.
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sexta-feira, 5 de setembro de 2008
A Próxima Atração
para a próxima atração
calculou-se a metragem
de cada palavra
mandamos colocar esquadrias
em volta das pausas
analisamos a acústica dos templos
gregos e dos banheiros azulejados
de nossas avós
desfizemos o nó
górdio
enfim
minuciou-se tudo quanto
se podia minuciar
em defesa duma balada
de ângulos retos
planos cartesianos
capim ressequido
hora marcada pro trem sair
& nenhum desespero
meus senhores
nenhum desespero
a próxima atração
poderá até dizer
dum certo desespero
mas será com dicção impecável
para a próxima atração
iluminamos o palco de modo
a transformar o jorro da consciência
num regatinho
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
Humberto
"Meu terceiro funeral esse ano, pensou Fortes, sem contar o do Humberto, em Fortaleza, que não foi exatamente um funeral, antes uma festa junina.
A cerimônia tinha sido bem bonita, disseram-lhe em seguida. Humberto fora o único de seus colegas a deixar por escrito que queria ser cremado – e não no Rio de Janeiro, onde fizera sua vida, tanto em termos pessoais como acadêmicos, mas no seu lugar de origem, na sua, por assim dizer, nascença. Feito o traslado do corpo, deveriam incinerá-lo o quanto antes, depois salpicá-lo pelo mar de sua infância, e que estivesse brabo, o mar de sua infância, de preferência, porque era assim que Humberto fazia questão de ser recebido – por quem? –, com tumulto. Diletante, pensou Fortes, diletante até o fim.
Amador."
(do conto "Um Casal")
Edward Lear
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
Check Me Up
tabagista -- em torno de 30
cigarros por dia -- álcool em quantidades
consideráveis -- nível de stress: um bocado
alto -- nenhuma atividade física. A seu favor
bom, você é bem novo.
Tanto que na escada
do edifício acendo um cigarro
e começo a dançar Prefab Sprout
(perversão de pequena montra)
(vou viver!)
aperto o botão errado
na melhor parte da canção.
terça-feira, 2 de setembro de 2008
Maria
"Como se fosse ontem: a Maria toda um brilho oco, boneca feérica girando nos braços do Roberto, não tinha olhos, nem pernas, nem braços, nem boca – para mais ninguém. Consumida, pensei, consumida, o que era novo, o que era um atributo novo, em se tratando de Maria, mulher que nunca me pareceu consumida de coisa nenhuma, mesmo quando se dizia transtornada – mesmo quando me telefonava, de madrugada, pedindo que eu viesse até sua casa o quanto antes, dizendo que não podia mais consigo mesma, se ficasse mais quinze minutos sujeitada à própria companhia naquela casa imensa e escura acabaria fazendo uma bobagem, que ela pagava o táxi de ida, que ela pagava o táxi de volta, que a gente podia ficar até de manhã se refestelando no uísque importado dos pais, mesmo quando ela se oferecia para pagar o táxi de ida e de volta alegando-se: completamente transtornada, eu já previa aquela dureza de rosto que ceifava na raiz qualquer expressão discernível, os olhos baixos, os cabelos ruivos, bagunçados, o porte que a minimizava, muito embora fosse muito alta, a Maria, muito mais alta do que eu, muito embora alguns centímetros mais baixa que Roberto, Maria me recebendo no portão com calma principesca, ao lado do vigia noturno, o trenchcoat do pai mal disfarçando o pijama em motivos náuticos, e a boca dela fazendo bem devagar e assim: que bom que você veio."
(do conto "Uma Vingança")
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
Quarto
olha não
muito fundo
presença
sem mundo
compare-se
ao chuvisco
que orvalha
a largada da noite
quase tudo
quanto existe
é um quarto
a intervenção frontal
duma imensa paisagem
que consegue ser a mesma
a todo o tempo à força
de nunca parar quieta
um pouco
quieto
fica – o mesmo
quer calar
a queixa
de não ser
panorâmico
mas não – não consegue
calar
de ver
e não ver
tudo (presença
sem mundo)
costados
da coisa um isto
que se agita
protesta reivindica
-se todo
guarda em silêncio
a linguagem que o carreia
para longe – possivelmente o Diabo
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