segunda-feira, 13 de abril de 2009

Sontag sobre Leiris


“Em vez de uma história de sua vida, (Michel) Leiris nos apresenta um catálogo de suas limitações. A Idade do Homem não inicia com “Eu nasci em...”, mas com uma prosaica descrição do corpo do autor. Ficamos sabendo nas primeiras páginas da incipiente calvície de Leiris, de uma inflamação crônica nas pálpebras, de seu pobre desempenho sexual, de sua tendência a curvar os ombros quando senta e a coçar a região anal quando está sozinho, de uma traumática tonsilectomia à qual foi submetido em criança, de uma infecção igualmente traumática no pênis; e, subseqüentemente, de sua hipocondria, de sua covardia em todas as situações do menor perigo, da incapacidade de falar fluentemente qualquer língua estrangeira, de sua deplorável incompetência nos esportes físicos. Seu caráter também é descrito sob o aspecto da limitação: Leiris apresenta-o corroído por fantasias mórbidas sobre a carne em geral e as mulheres em particular. A Idade do Homem é um manual de abjeção – anedotas, fantasias, associações verbais e sonhos vazados nos tons de um homem, em parte anestesiado, que com curiosidade põe o dedo em suas próprias feridas.
O livro de Leiris pode ser considerado um exemplo especialmente vigoroso da respeitável preocupação com a sinceridade peculiar às letras francesas. (...) Mas analisar o livro de Leiris apenas sob este aspecto é fazer-lhe uma injustiça. A Idade do Homem é mais estranho, mais cruel do que tal parentesco sugere. Muito mais do que qualquer confissão revelada pelos grandes documentos autobiográficos franceses sobre sentimentos incestuosos, sadismo, homossexualidade, masoquismo e grosseira promiscuidade, Leiris consente ao obsceno e ao repulsivo. O que choca não é particularmente o que Leiris fez. A ação não é o seu ponto forte, e seus vícios são os de um temperamento sensual espantosamente frio – fracassos e deficiências rastejantes mais freqüentemente do que atos sensacionais. É que a atitude de Leiris não se deixa redimir pela mais leve nuance de respeito próprio. Esta falta de estima ou respeito próprio é obscena. Todas as outras grandes obras confessionais das letras francesas brotam do amor-próprio e têm o objetivo claro de defender e justificar o eu. Leiris se detesta, e não pode defender nem justificar”.
(Susan Sontag no ensaio “A Idade do Homem, de Michel Leiris”, em “Contra a Interpretação”).

Um comentário:

SB disse...

Grandicíssima!


SB