terça-feira, 18 de novembro de 2008

Just in Time


"O carro me espera na portaria. Meu amante espera ao volante e parece calmo. Vamos a um barzinho na Glória onde um quarteto de jazz se apresenta semanalmente. A moça está cantando just in time, I found you just in time. Eu tomo rum e coca-cola e procuro evitar um coquetismo sem muita razão de ser. Mas é do horror, isso: vou me sentindo tão fria, a ponto de perceber minha própria pele escamosa debaixo do vestido de bolinhas. Peço licença, vou ao banheiro (ao toalete: fim do corredor, à esquerda). Fixo-me no espelho tempo que me parece bem longo. Arroubo de didatismo: quero mostrar ao mundo como se pára.

Pensa, Geórgia, pensa: isso é qualquer coisa com a cabeça, mas está muito longe de pensar. Deve haver um meio-termo, deve haver um meio, que seja, é preciso ser precisa, estratégica, certeira, e acima de tudo, calma, que tudo tem a sua ocasião própria e há um tempo para cada propósito debaixo do céu (sempre me acontece de lembrar passagens bíblicas em banheiros de bar). Estendo a corda-bamba da porta do reservado à mesa e vou, salto ante salto, um banquete de cosmopolitismo camicase. Sento, um sorriso que quero discreto, um olhar que quero afiado, um tipo que quero Grace Kelly, em suma, trato de iludir-me de um perfeito equilíbrio da forma.

Não posso deixar de notar a naturalidade com que meu amante se conduz, é possível que tenha experiência nessas sordidezas, mas isso não me concerne. E mais, e que difícil aceitar que: não me sinto nem um pouco sórdida. Não, absolutamente. Rebusco a garganta atrás de alguma amargura subliminar e nada e digo nada e quero dizer: porra nenhuma. Pra não dizer que não tento – insto a consciência a berrar em termos os mais grosseiros -- esse sujeito tem dona, esse homem fede ao mijo de outra.

Em pura perda.

Sou Grace Kelly.

Estou intensamente feliz. Janto com um homem levemente estrábico de belo perfil, tomo rum e coca-cola e a moça do quarteto de jazz canta just in time, I found you just in time.

Mas eis que ele resvala ao fim da noite; gagueja ao enunciar a palavra "motel". Interpreto isso como uma tentativa de me comunicar certa consciência de certo e de errado, sinto que ele quer me impressionar com esse lampejo de culpa. Intentando contornar maiores complicações, coloco a mão sobre a virilha de meu amante. Conjeturo introduzi-la em sua calça mas temo que ele perca a direção do automóvel".
(do conto "A Desatenção")

Um comentário:

Simone disse...

Nossa, eu leria esse conto todo hoje!
É isso aí!