terça-feira, 2 de setembro de 2008

Maria


"Como se fosse ontem: a Maria toda um brilho oco, boneca feérica girando nos braços do Roberto, não tinha olhos, nem pernas, nem braços, nem boca – para mais ninguém. Consumida, pensei, consumida, o que era novo, o que era um atributo novo, em se tratando de Maria, mulher que nunca me pareceu consumida de coisa nenhuma, mesmo quando se dizia transtornada – mesmo quando me telefonava, de madrugada, pedindo que eu viesse até sua casa o quanto antes, dizendo que não podia mais consigo mesma, se ficasse mais quinze minutos sujeitada à própria companhia naquela casa imensa e escura acabaria fazendo uma bobagem, que ela pagava o táxi de ida, que ela pagava o táxi de volta, que a gente podia ficar até de manhã se refestelando no uísque importado dos pais, mesmo quando ela se oferecia para pagar o táxi de ida e de volta alegando-se: completamente transtornada, eu já previa aquela dureza de rosto que ceifava na raiz qualquer expressão discernível, os olhos baixos, os cabelos ruivos, bagunçados, o porte que a minimizava, muito embora fosse muito alta, a Maria, muito mais alta do que eu, muito embora alguns centímetros mais baixa que Roberto, Maria me recebendo no portão com calma principesca, ao lado do vigia noturno, o trenchcoat do pai mal disfarçando o pijama em motivos náuticos, e a boca dela fazendo bem devagar e assim: que bom que você veio."
(do conto "Uma Vingança")

Um comentário:

helena disse...

I.
que coisa bonita tudo isso aqui. nem sei falar do estranhamento das tuas palavras porque sei que elas vão aquém disso.
vou ler sempre,
e fique a vontade também!
kissa!