quarta-feira, 24 de outubro de 2007

O Cinematógrafo das Letras


“Fragmentar a imagem do mundo é uma coisa; pôr em risco um ego scriptor todo-poderoso, outra bem diferente. Porque isso acarreta, quando nada, tirar o solo de uma definição estreita, mas dominante, da lírica enquanto expressão de uma capacidade artesanal 'invulgar' ou de um eu que se confessa ou se projeta sem cessar sobre os mais diversos objetos, temas e situações enfocados. E, perdido esse eu sobre o qual se tecem, em geral, as significações no poema, passa a ser necessário trabalhar formas diversas de construí-las. E, testando impessoalidades irônicas, multiplicar as máscaras e deixar que se justaponham ou confrontem, em montagens imprevistas, discursos e imagens diversos.
São necessários, então, verdadeiros exercícios de tiro ao alvo. Exercícios em série. Como as muitas glosas da poesia enquanto quadro histórico que se sucedem em Pau-Brasil(1925). Ou como a invasão pelo reclame de uma possível cena íntima em 'música de manivela', do mesmo livro de Oswald:

Sente-se diante da vitrola
E esqueça as vicissitudes da vida
Na dura labuta de todos os dias
Não deve ninguém que se preze cuidar
Descuidar dos prazeres da alma
Discos a todos os preços.

Poema no imperativo, como a forçar uma compra. Frases meio mecânicas, à maneira de gravações; repetições automáticas de um anúncio que se parece saber de cor. Poema sem sujeito ou interlocutores definidos. A um passo do 'produto industrial'. Espécie de olhar demolidor em direção à poesia em busca de profundidades e almas, em 'música de manivela' o prazer e a felicidade se compram e se encontram nos mais diversos magazines, 'a todos os preços'.
O oposto das indagações atormentadas de um Raimundo Correia, por exemplo, num poema como “Fetichismo”:

Homem, da vida as sombras inclementes
Interrogas em vão: - Que céus habita
Deus? Onde essa região de luz bedita,
Paraíso dos justos e dos crentes?...

Em vão tateiam tuas mãos trementes
As entranhas da noite erma, infinita,
Onde a dúvida atroz blasfema e grita
E onde há só queixas e ranger de dentes... [...]

Interrogações que do desespero metafísico passam à charge se se contrapõe a elas um texto como 'aperitivo', da seção 'Postes da Light', de Pau-Brasil:

A felicidade anda a pé
Na Praça Antônio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus

Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos

É difícil ler sem certa ironia este 'que céus habita Deus?' quando se descobre que 'a felicidade anda a pé', quando imagens profundas ('as vicissitudes da vida, os prazeres da alma') e vocabulário vistoso servem apenas de recurso a mais em algum reclame de discos e vitrolas, quando 'foguetes pipocam o céu de quando em quando'.”
(Flora Sussekind, "O Cinematógrafo das Letras")

3 comentários:

Anônimo disse...

Talvez algum dia ainda teremos um oftalmo-tatólogo cinematografando as letras degustas. Ai sim meus sentidos estarias felizes por completo. Seria a obra máxima.

Anônimo disse...

o que são nomes?

Anônimo disse...

as vezes até eu me emociono com o que leio, quem mandou ser desorganizada?