domingo, 30 de setembro de 2007

Beto Geada



Tomei a estrada menos viajada
E isso não fez diferença nenhuma.

Réptil de Lupanar



Setembro de 2007, Café Tortoni





cortesia de Barbara Marques

sábado, 29 de setembro de 2007

Recuerdo


ou As Coisas Estão No Mundo, Só Que Eu Preciso Aprender


não, não, o relato portenho começa aqui, ido, volto, 70 % dos originais largado num quarto de albergue que não o meu, meu caderno, uma peça do Thomas Bernhard, o jato que me deixo ser ganha San Telmo, aceno o primeiro táxi que passa pela rua, a rua que eu não sei o nome, o homem que eu não sei o nome, o homem que é série de números impressos numa carta de identidad e uma três por quarto borrão que nem se reconhece, a faxineira diz num sussurro que o desayuno está pronto mas não, o relato portenho começa aqui, e tem que ser urgente pra saber que é sem aeroporto nem escada rolante nem elevador nem banzé no check-in, não tem desayuno nem coisa nenhuma, é à memória do melindre largado na Calle Defensa pra fazer baile na tarde que os tambores despenham, ir fazendo e refazendo a corte da força e da beleza, fazendo e refazendo os carnavais de estrangeirismo, balançando estardante de James Dean, o vento e o medo que bebi ostensivo, largo, anfíbio, nos bares do centro e de Palermo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

FAVOR TOCAR


Sim. Não não. É é esquisito não tem como saber o que passa na cabeça das pessoas, né? Tá lá escrito na plaquinha. E o meu trabalho é ficar aqui dizendo: pode mexer, mexe aí, né? O artista quer que você mexa. Mas as pessoas não mexem. Lá no canto tem o tonel, lá, ó, tá vendo? Depois pergunta pra Ângela como é que é. Um suplício. A gente não pode obrigar as pessoas a fazer nada. A Ângela fica lá o dia inteiro, coitada: pode entrar, entra, o artista quer que você entre, ele só fez isso pra você poder entrar. Tem lugar pra deixar bolsa, sapato, carteira, chave. Tudo. De graça. Mas as pessoas não entram. Elas passam, fazem uma cara assim de quem tá comprando peixe na feira. Mas não entram no tonel. É esquisito, a gente não sabe o que acontece na cabeça dos outros. A gente é pago pra dizer pras pessoas que pode, mas as pessoas não querem. Ninguém quer entrar no tonel.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Urbano


Sobre flores:
jogar no lixo a rosa murcha do aniversário
expiação mediante vasinho de violetas
tirar poeira da margarida de plástico
sobre o arquivo

minha amiga alérgica a pólen
diz que é entrar num orquidário
e começa a espirrar

minha mãe se alarga toda
quando aventa:
peixe é um bicho estúpido

não, não sei, mas é de considerar
talvez
o vago parentesco entre a flor, o peixe
e o terremoto, o furacão

evito pisar na grama
na areia
cheiro de canteiro molhado me põe nervoso
a ameaça constante do que espreita por nascer.

domingo, 16 de setembro de 2007

Thomas Bernhard

"´Falar com pessoas que acabamos de conhecer é cansativo e nos faz pensar. Divertir-se às custas delas não é correto; levá-las a sério tampouco é. Trata-se sempre da velha questão de saber até que ponto se deve fazer contato, se se deve mesmo fazer contato, não acha, doutor?... Contatos´, disse o príncipe, ´... como o senhor costuma dizer, doutor, só existo na medida em que faço contatos etc.... mas isso desperta sempre em mim o elemento irônico da minha personalidade... A ironia que atenua o insuportável... Deter-se na fronteira da neurastenia... Penso: fui amável demais com Huber ou fui pouco amável demais com Huber? E como me saí com Zehetmayer? Porque a idéia de ter sido demasiado amável ou demasiado pouco amável me acode sempre de súbito quando alguém vai embora. Entretanto fui bastante amável com Huber, penso. E também com Zehetmayer fui bastante amável. Com quem fui menos amável foi com Henzig; foi uma conversa muito curta, um encontro, um insultar-se com antipatia. Henzig, penso, é o administrador ideal´".
(Thomas Bernhard, "Perturbação")

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Oi, Futuro!



Malta; tem treta imersiva lá no Oi Futuro, no Flamengo. Trata-se da Blooks – Tribos & Letras na Rede, um panorama dos Novos Novíssimos com curadoria de Bruna Beber, Heloísa Buarque de Holanda e Omar Salomão. Passem lá, tá super-bonito-pra-dedéu.

Tem conto meu lá, aliás. É esse daqui:

A VERDADE

É muito difícil – para mim, ao menos; os outros aparentam gosto – você seguir vivendo.

A coleção de Barbies de minha dentista. Incontinenti recordo o consultório na Bergasse, número 19 – a profusão de bibelôs de antes do dilúvio, prateleiras, prateleiras. Sigi, seu rosto cortinado de fumaça azul. Estou divorciado de boa porção de minha boca agora: uma bacia, um sugador, um ancinho. Breve a assistente coxeia sua entrada, empunhando meu novo pré-molar de acrílico, a mesma ladainha do marido subitamente sustado por infarto fulminante – chamá-la-ei Igor a partir de agora.

Depois da faxina, a empregada tem por sestro sentar-se frente à porta dos fundos – naturalmente, aberta – e observar o corredor mal-iluminado; estará ideando planos de fuga? Estarei eu? Será necessário dialogar mais? Leva-se uma vida pacata aqui. Ademais, é muito bem-paga; as dependências espaçosas e confortáveis, muitas paredes para seus diplomas e colagens e o eventual slogan revolucionário.

Haverá real necessidade de tantas interrupções tolas? Meus vizinhos de cima decidiram reformar o banheiro; o barulho é insuportável. Assim não é possível trabalhar. A tirania rítmica das pancadas – tump... tump... tump... – alonga por demais o trajeto do meu escritório até o banheiro.

Nada sei do motor a nossa distância. Faz três anos que o assunto me ocupa, o que deu origem à tetralogia “Decisão Liminar Temporária”. Encontro seus amigos em eventos literários, indago de seu paradeiro, eles a) calam b) desconversam c) discretamente pedem que eu abaixe minha pistola. Peço-lhes que me refiram a você: digam que estou emagrecendo, que já não sangro mais em público com tanta freqüência, que resolvi, afinal, trocar os dentes que não me serviam por outros mais apetecíveis ao senso estético do comum. Mas sei que essas informações não lhe chegam; ou lhe chegam distorcidas, irreconhecíveis. Exatamente por isso que não mando mais cartas: temo que as palavras se baralhem no caminho e formem sentenças novas, sobre as quais não teria responsabilidade alguma.

Não tomo do absurdo nenhum grande alívio.

Escusado dizer que, na cidade, as pessoas não são como coelhinhos tristes. Portam-se mais como imensos rinocerontes que sofrem de enxaqueca, e se agastam com a lentidão do tratamento homeopático. A lição mais pertinente que se pode auferir de um passeio pelo Centro: precisamos com urgência de analgésicos mais fortes.

Certa feita, durante um colóquio, um sujeito me perguntou: o senhor não se sente nem um pouco culpado por não conseguir escrever em outra pessoa que não a primeira? Respondi: sinto-me TRANSIDO de culpa por não conseguir escrever em outra pessoa que não a primeira; assim como, em meu dia-a-dia, sinto-me TRANSIDO de culpa por não ser onisciente; ao fim do quê, pus-me de pé e levantei a camiseta, mostrando a todos os presentes meu umbigo pintado de tinta fosforescente. O mesmo sujeito que havia colocado a questão comentou, altíssimo: sim, todos nós já lemos “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”. Por favor, cubra isso.

Parece-me que, nos dias de hoje, as relações não mais se dão entre indivíduos, e sim entre as funções que esses indivíduos desempenham. Ponto pacífico que isto pode conduzir a vultosas complicações de cunho ontológico. Mas até o presente momento parece estar funcionando.

Naquela época, você era um Zé Ninguém, e tudo a seu respeito era promessa. Nós lotamos as arquibancadas, tão apreensivos que mal podíamos respirar. Sonhávamos sua próxima cartada. Agora seus quadros aquilatados em milhões, seus livros encabeçam as listas dos dez mais, suas canções, êxitos radiofônicos instantâneos. Você encontrou o corte de cabelo perfeito e o tom de voz mais adequado à consecução de seus objetivos, e seus amigos entrevistam celebridades nos fundos do Copacabana Palace para canais de tevê a cabo. Vingou. Vingou-se. Mas de quê? Nossos olhares petrificados nas arquibancadas, nossa incapacidade de tragar o oxigênio que se nos dispunha, nossa apreensão? Esteja certo, nossas intenções eram as melhores possíveis, ou pelo menos boas o bastante para que você permanecesse imóvel, bem no centro do estádio, de onde você nunca deveria ter saído.

Não temos mais motivo algum para perder o fôlego, nossas palmas em carne viva de tanto aplaudir. Todos mortos de cansaço.

O barulho tornou-se ainda mais alto. Abro a porta do escritório. Operários põem abaixo uma das paredes do foyer com picaretas. Por quê? Seu lugar é no andar de cima, tento informar-lhes. Não parecem escutar. A empregada observa, pálida, resignada, diz que fez o possível. Restamos os dois no cômodo, estáticos, rostos retintos daquele horror que se sente à exposição de uma alegoria particularmente óbvia.

Num frasco vazio de Higher, by Dior, pus uma oração à Nossa Senhora Aparecida. Depois joguei no mar. É ver no que isso dá.

Durante o mesmo colóquio: o senhor se sente confortável com o epíteto de escritor existencialista?
Macaco gosta de banana?
Acaso não terá sido... branca, a cor do cavalo branco de Napoleão?
Se nos espetardes, não sangramos?

No centro de um estádio, as arquibancadas lotadas. Sonham minha próxima cartada, mal podem respirar. Devo matá-lo? Devo matá-lo alegoricamente? Devo matá-lo de verdade e depois escrever um roman à clef narrando a experiência? Devo pedir à Gervásia (a empregada) que o faça, e em troca conceder-lhe permissão para usar maquiagem dentro de casa? É preciso apenas errar a mira; manter o ar irrespirável para os pagantes. Custou-me um bom bocado perceber, mas não há negócio mais rentável, no âmbito das simpatias, que o fracasso. A multidão delira.

Meu agente telefona e diz que a revista X. está pensando em contratar um novo crítico de teatro, mas, verdade seja dita, eu nunca vi uma peça em toda minha vida.

sábado, 8 de setembro de 2007

Vale Quanto Pesa


"Aquela madrugada deu em nada, deu em muito, deu em sol
Aquele seu desejo me deu medo, me deu força, me deu mal

Ai de mim, de nós dois
Ai de mim, de nós dois"
(Luiz Melodia)

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Pitonisa


pra Hilda

não acredito
que nunca mais vou arrumar
tuas estantes

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Nostálgico


Foi um grande inverno
novembro de 46
quando me apaixonei por um clarinetista
e a janela do meu escritório recortava
seis quinze avos de Torre Eiffel

não consigo pensar em ninguém
que não estivesse escrevendo um romance

açoitando de juventude
quantidades impossíveis de papel

salvo, talvez, o clarinetista

não consigo pensar em ninguém
desmusado
preciso fosse, escreveríamos para os percevejos
escreveríamos

como talvez o clarinetista chutasse latas de lixo
fizesse gestos obscenos para as freiras que flutuavam
nevosas pelos bulevares cuspisse na nuca dos meninos embecados
a caminho do liceu escreveríamos