“I. concorda e vai na minha esteira, tentando equilibrar seus embrulhos, falando do livro ininterruptamente enquanto assinto repetidas vezes com a cabeça e o duplo-sorriso, diz da dificuldade que é concentrar-se nos tempos que correm, a dificuldade imensa de tentar abordar os sentimentos grandiosos (os sentimentos grandiosos!), quando tudo hoje em dia parece estilhaçar-se à força da investigação mais superficial, e a pressão de fazer a vida, deixar a casa dos pais, com quem I. alega ter relações destrutivas, sutilmente destrutivas, mas ainda assim, destrutivas, ademais, certa letargia generalizada que parece predar nossa geração, se bem que, como diria F., conhecido de I. que desconheço, não tem mais isso de geração, I., é só um bando de gente junta (por alguns instantes penso gostar mais de F. do que de I., mas não tenho o menor interesse em conhecer pessoas novas nesse momento da minha vida), mas o livro, o livro caminha, diz. I. ter uma coleção admirável de primeiras páginas, esboços, notas, apontamentos, lembretes, correspondências, cadernos e mais cadernos que vem acumulando há mais de quatro anos, e que o esforço agora é de coligir esses fragmentos de modo a conseguir um todo coeso, uma mesma temática, uma mesma questão, já que se sente tão pouco facultado a atacar de frente (suponho que queira dizer “linearmente”) o que quer que seja que tanto lhe atormenta(...)”
(do conto “Complicações com um Fantasma”)
Os mais chegados sabem: tirei 2007 para escrever. Deu um estalo. Desse ano não haveria de passar. Provável que passe, pouquinho que seja. Mas o fato é que desde o primeiro trimestre desse ano de 2007 minha ocupação primordial tem sido essa, o “Juvenília, ou Novas Possibilidades Para Uma Fossa Insublimável”.
Quando comecei a trabalhar no livro, ainda nutria a ilusão de que pouco ou nada mudaria. Toda decisão radical que a gente toma acaba coadjuvada por um desejo masmorrento de que nada se altere radicalmente. Pelo menos comigo é assim, e eu acho engraçado. A gente arde de vontade que as coisas sigam seu curso, os trancos e barrancos que a gente já conhece, teria essa vantagem, pelo menos. Daí que a vida ministra uma sucessão de pescotapas na gente e chega o segundo estalo: as coisas mudaram, mudaram um bocado. A decisão está tomada. Ter volta, até que tem, só que no mundo. Na gente não.
Andei lendo um Cortázar pecurrucho bonito como só (o infeliz não erra), “Diário de Andrés Fava”. Em algum momento o diarista titular diz: “Gradus ad Parnassum, Czerni, arpejos – a técnica. Mas o piano não muda, limita-se a modelar o homem, a fazer dele um pianista, um homem-piano, um servidor que corre o mundo de fraque preto. As mãos livres transformam-se em mãos hábeis para... (Um martelo, um cartão de enrolar cigarro – problemas do outro mundo; a mão do pianista é cada vez mais do piano e cada vez menos do homem)”. Bem por aí que a coisa vai. A gente se deixa engolir pela vivência nova, começa a ser em torno dela, cozinhar uma rotina que, se não difere em tudo da antiga, implica forçosamente numa nova perspectiva das interseções. De todas as vezes que eu tentei, cortejei a idéia de escrever uma coisa de alguma conseqüência, não quis abdicar de nada e entrei pelo cano. Multi-tasking não é comigo. Parabéns pra quem consegue, mas eu não dou nem pra acender cigarro andando. Os mais chegados sabem. 2007 foi ano de parar tudo e tentar entender o que diabos se podia fazer dessa maluquice toda.
Há alguns meses atrás mandei as primeiras cinqüenta páginas duma primeira versão do “Juvenília” para um concurso. Resultado só em dezembro. Assim como (creio eu) o resultado final do Contos do Rio (tem conto meu entre os dez finalistas).
Tenho recebido críticas extremamente pertinentes, positivas e negativas, no mais das vezes da parte de amigos próximos, em cuja opinião voto a máxima confiança. Tenho trabalhado obsessivamente nos pontos que considero e foram considerados falhos, tentando sempre me manter fiel a uma certa pesquisa de linguagem que tenho empreendido e a um certo viés da ficção que quero muito compreender melhor. Tenho entrado em espirais perigosas de auto-didatismo sem farol, perdendo mestres estupidamente e vendo alguns dos precitados amigos se mandarem do Balneário pra fazer a vida onde tem vida a se fazer. Tenho sofrido decepções acres. Tenho embarangado seriamente e bebido feito um lorde sempre que possível. Fui parar num maço e meio quase dois por dia. Tenho fugido, tenho voltado, tenho pensando em fazer bioenergética, tenho tido pesadelos freqüentes em que recebo envelopes de papel pardo e não consigo abrir o lacre. Aqui que o medo faz ato de presença inevitável. Será que dá? É possível? Vale a pena? Quem está fazendo as coisas, e como?
A gente bate no peito pra dizer uma desilusão que, a rigor, ainda nem chegou. Fico pensando no Cioran, que dos píncaros do desespero não parou de escrever nunca (que fosse compulsão, e não saída, ainda assim era algo como sentar no mundo uma certa visão de mundo extremamente particular, deve ter havido um motivo pro cara não parar, certo?). Fico pensando horas e horas a fio no verbo/ato “bancar”. Não dizer “estou escrevendo um livro” como quem diz “desculpa, machuquei seu pé?”. O que não é falar de orgulho. Não estou falando de orgulho. Orgulho do que quer que (se) seja é pecado e Deus relampeja. Estou falando de um certo estado de coisas que só se dá com extremos: sótão e porão de um narcisismo que, por força das circunstâncias, do nosso gosto inerente pelo cliché, já se tornou marca-registrada de quem quer fazer a vida escrevendo. O ideal? De enunciação pausadinha e sensata, estou escrevendo um livro, sim, a família, como vai? Ah que surpresa o planeta não parou de girar veja você.
Utopia é o que é sem lugar. As coisas mudam, elas não têm escolha. Dezoito baganas perfiladas sobre a mesa do computador, xícaras de café por toda parte, a puazinha no estômago que pra breve aflora em úlcera. Um trabalho danado de trabalhoso e já começo a contrair minhas primeiras dívidas com essa entidade ubíqua que é o Banco Bradesco. Chego a pensar em proporções inversas, que nem “O Arquivo” do Giudice. Estou até o pescoço de coisas por revisar, deadlines auto-impostas e tudo isso é saber que a gente não chegou nem no primeiro andar, é a angústia de dizer o mundo e a angústia de estar no mundo que se quer dizer, e é uma angústia sem movimento, sem revolta, sem alternativa, sem mãos dadas, muito pelo contrário, se alguém acha sua angústia mais coloridinha e bem-torneada vai lá e te chuta os cornos. Já disse que fico pensando horas e horas a fio no verbo/ato “bancar”? Pois. É bem por aí que a coisa vai. Desde sempre a gente sabe que não tem saída, e até o quadragésimo quinto do segundo tempo há esperança de que uma janela secreta se escancare. Ela não se escancara. Tem pouco lá fora além da nossa vontade. Não significa alcançar. Não significa redundar em nada. Significa exatamente isso que se disse: tem pouco, mas muito pouco mesmo lá fora além da nossa vontade.
Vontade de sentar no mundo o que eu entendo por mundo, tenção vaidosa, tudo o mais. Segundo o planejamento corrente, estou a 30 % de terminar “Juvenília” de uma por todas as vezes, e me dou até o fim do ano. Quero escrever mais sobre escrever, de maneira mais responsável. Vou ver se faço isso mais vezes, que seja pra nada, mas que seja. Não vou cometer o absurdo (aqui) de dizer que estou ficando velho, mas em tempo, sim, mais cadenciado, apitou-se o fim do jogo. Por exemplo, hoje vou extrair um siso.