sábado, 29 de dezembro de 2007

Ele

a Tiago Santos Lima

era homem de geografia impossível. Nunca conseguimos refazer a traça de uma ação sua a um chakra específico, a traça duma sua coisa feita a seu respectivo bolsão neurótico, enfim, nunca conseguimos refazer-lhe a traça. Digamos: ele mata um vizinho a tesouradas, queremos impingir-lhe um trauma qualquer, um desses horrores da infância que nos sobem de quando em quando das masmorras sulfurosas do subconsciente e nos impelem a, por assim dizer, matar um vizinho a tesouradas. Mas não logramos êxito. Ele insiste em que não tem traumas, solamente sueños. A princípio rimos desse aparte, porque ele nos parece engraçado. Em seguida nos desconcertamos profundamente desse aparte nos ter parecido em algum momento engraçado. A coisa vai se esclarecendo em nossos espíritos, lenta porém inexoravelmente, estamos diante de figura perigosíssima. Portanto tocaiamos essa figura perigosíssima à saída do Parque Nacional. Ele segue pela rua distraído, cumprimentando a lixeiros, duques e corretores da bolsa com o mesmo aplomb, até que num beco escuro sacamos de nossas retroprojetoras e tentamos ligar seus pontinhos à força (ele é feito de pontinhos). Mais uma vez, não logramos êxito. É INCRÍVEL COMO ELE SE DESAGREGA. Jamais vimos um homem se desagregar com tamanha desenvoltura. É INCRÍVEL. Dá gosto de ver, na verdade. Mal encostamos a ponta e os pontinhos em revoada rumo ao entardecer. Por isso que quando ele decide retornar ao nosso convívio, sempre o aceitamos de bom grado. Ele é capaz de coisas das quais simplesmente não somos capazes. Bom, talvez não exatamente por isso; mas como analisar nossos sentimentos com relação a um objeto/homem que não se presta a nenhuma análise? ESTAS SÃO QUESTÕES IMPORTANTES. Não são necessariamente urgentes, mas ainda assim, meritosas da atenção de nossa comunidade. O que fazer do homem que é sem eira, beira, rima ou razão? Enjaulamo-lo como a uma borboleta rara e colorida ou deixamo-lo solto como a uma borboleta rara e colorida? Fale com seu congressista a respeito, peça sua opinião. Já não se sabe se é praga ou se é benção, se significa ou faz que é a noite inescrutável dos homens, ou quem sabe não se trata dum terrível conluio semântico do qual ninguém faz idéia? De todo modo, ele sempre foi um homem conhecido por ser imprevisível. Imagine-se o susto que levamos quando ele disse certa feita que ia lá comprar cigarros e depois – Deus meu! – voltou.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Strike Up The Band




Hoje tem show d'Os Subterrâneos, colectivo musical-paranóide que fronteio há quaisquer anos, lá no Maze Inn, mais conhecido como Parangolé do Bob Nadkarni. Fica no alto da Tavares Bastos. Você faz assim: chega na esquina da Bento Lisboa com a ladeira da supracitada Tavares Bastos, toma a ladeira, sobe a ladeira, quando a ladeira acabar você enfia pelo ajuntamento de casas e segue andando mais um pouco. Qualquer coisa, é perguntar pra qualquer um pela casa do Bob -- é batata. Estaremos em ótima companhia, por sinal: a 3a1, a Café Funquê e Os Pedros também se apresentam, seja, tem tudo pra ser bonito pra dedéu. Vá lá, confira.


Rua Tavares Bastos, 414/66

com as bandas: 3a1, Café Funquê, e Os Pedros

R$ 5 até 22h

R$ 10 até 0h

R$ 15 depois de 0h


E falando em conferir, nosso novo single (versão aloprada de "Carcará", de João do Vale e João Cândido) já está disponível no myspace.com/ossubterraneos -- em podendo, pegue, mate, come.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Hilda


"De muito pequena Hilda aprende que Deus é lugar – nem gente nem coisa. Isso lhe dá alguma confusão, o que é natural, ser pequeno é sempre e forçosamente um baralhamento louco de tudo que se apresenta. Mas à guisa de exemplo: um irmão de seu pai mora em Curitiba, num bairro chamado (!) Cristo Rei. E mais adiante, questões de paternidade: se a tia (que é quem mais lhe fala nessas coisas) insiste em que todos são nascidos de Deus (que é, como já se disse, um lugar), então por que todo esse alarde em torno de Jesus? Judiaram dele um bocado, isso se entende; lá na cruz fez frio, fome, sede, sem falar nas pancadas que ele apanhou na Rua Crucis, que era caminho pro Monte Sinai. De fato, tanto fizeram que ele acabou morrendo. Mas! Uma reviravolta (Murilo acha essa palavra estúpida). Ele desmorre, faz questão de desfilar por aí e mostrar pra todo mundo (isso lá pela Páscoa), o que parece ter causado certa espécie. Não obstante, fogos de artifício, porque ele (ao que lhe consta) só voltou pra dizer que estava de parte outra vez."
(do conto "Hilda")

Mundo Como Vitral Partido


dentro em que pese
a rédea solta
é costume eu falar bem lento
comigo mesmo

(talvez por isso mesmo
não me quero dar ao susto)

é costume eu falar bem lento
contra o que me em-puxa
a tantos ventos
cidade fora
que eu já nem sei se a persigo
ou se é ela que vem rugindo
atrás de mim rugindo
essas coisas duras de asfalto
e que também são luz

nenhum cantar possível de poste?

pois eu aqui falo lentíssimo
aqui ao que me faço
(uma delicada
arquitetura de álbuns)
e as palavras bem miúdas
não do que trazem mas de si

domingo, 16 de dezembro de 2007

Ícaro


ali
avenida primeiro de março
estropiado entre buzinas e gritos
de todas as gentes
que larguei mão do sol
pra recomeçar a Terra.

Adília Lopes


"Preocupa-me ser precisa, exacta, falar verdade e estar viva."
(Adília Lopes)

domingo, 9 de dezembro de 2007

Synchronoscopio


Se penso meu próprio discurso poético como gadget de tornar a experiência do mundo una, apresso-me em dizer sempre, logo em seguida, que meu maior interesse reside nos desastres da máquina. Não que seu sucesso me seja indiferente. Há inspiração e a vontade de cantar – há afeto, creio eu, que ultrapassa o campo do cenográfico. Os brevíssimos desvelamentos em linguagem que hoje em dia fazem às vezes das grandes epifanias de ordem transcendental. Mas é preciso entender o risco, isso nem sempre é possível; desiludir-se da magia da linguagem, e estar real; entender, de uma vez por todas (isso me digo) que não há fórmula, nem oração, nem nada que restitua à linguagem sua translucidez. O mundo como complexa rede de relações, o que se ambiciona e o que se frustra, acima de tudo, o reino impenetrável do que não se prevê. Tudo isso está contido num dia, e meu poema circunscrito nele. O dia está contido no mundo que está contido no tempo; meu poema circunscrito em ambos. Tomo de empréstimo um pedaço do mundo e acredito que ele contém qualquer coisa de significante, urgente, mensagem. Para quem? Não, não é possível que a linguagem torne a significar com a mesma justeza teogônica de outrora, a História não o permite. Como validar essa impossibilidade, extrair dela um projeto, uma direção, um norte?
O herói morreu, vida longa ao herói.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Os Cigarros


oscigarrosseencadeiam

um depois do outro esse
que acabo de puxar do maço
pega-se à brasa do que vai terminando
(as mãos) fazem cordão de fumo
que isola a cena do crime e daqui
não passa ninguém (pedem asilo)

domingo, 18 de novembro de 2007

sábado, 17 de novembro de 2007

Anita (parte de um monólogo)


"Tão duvidando? EIN? Tô indo pra Grécia AMANHÃ, ha ha. Foda-se. Foda-se. Tem um limite, tem um limite pra tudo. Tem um limite. Isso, então. Pago minhas contas, não devo nada a ninguém. (...) Eu sou uma mulher de meia-idade. Praticamente. Nada me impede. NADA. Nada me impede de fazer um cruzeiro quando eu quiser e bem entender, eu sou uma mulher de meia-idade. Vou pintar as ruínas. É isso. É isso aí. Dias tostando naquele sol e pintando as malditas ruínas. Praia e ruína, ruína e praia. (...) Eu não agüento mais. Eu não agüento mais nada. Dá pra entender isso, né? Não é tão incrível assim, né? Quando as coisas chegam num ponto em que... nada... uma mulher da minha idade está no direito de ir pra Grécia a hora que ela quiser. (...) Eu tô dizendo, se eu ficar mais um mês nesse país eu vou explodir. Eu não agüento mais essas pessoas. As pessoas lá fora, eu não agüento mais as pessoas lá fora. Eu estou pegando PAVOR de tudo. Se eu ficar mais algum tempo aqui eu vou acabar num hospício, é tudo que eles querem, que eu acabe num hospício logo e pare de encher o saco, aí, que beleza, todo mundo vai poder dizer é, ela não deu conta mesmo, coitada. COITADA PORRA NENHUMA. Quero ver me chamarem de coitada quando eu estiver lá, de vestidinho florido, em Creta, toda brilhosa, bebendo vinho e vendo o pôr-do-sol, HA HA. Quero ver a cara. (...) Vou mandar postais. Pra todo mundo. Lindos. Postais lindos pra TODO MUNDO QUE EU CONHEÇO. Das ruínas. Vou mandar pra mulher do Paulo um postal de Atenas, quer ver? Mando mesmo. Ou uma foto minha fazendo a dancinha do ZORBA na praia, atrás escrito quem é a coitada agora, EIN? Coitados são eles. todos eles. Coitados são eles, eu não sou coitada, vou pra Grécia. Amanhã. Amanhã eu embarco. Me enfio num balde e vou clandestina que nem filme dos irmãos Marx. QUER VER? QUER VER? (...) Eu não suporto mais. Eu – não – suporto – MAIS."
(outro trecho do "Abecedário")

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Bárbara (parte de um monólogo)


"Mas eu me acho meio brutamontes. Um pouco, que seja. Sei lá – há coisas nas quais eu acredito, outras nas quais eu não acredito. É meu, eu não deixo ninguém tascar. (...) Não acredito – em dizer duas vezes a mesma coisa. Não gosto. Nem em nada que seja... ou que se pretenda duradouro. Não gosto de me repetir, acho perda de tempo. Só gosto das primeiras vezes. Quando ainda tem alguma coisa pra dividir, quando é descoberta. Como as cores. Cada vez que eu vejo uma cor é como se fosse a primeira vez. A primeira cor, a primeira vez. Isso nunca mudou. Eu não entendo as coisas quando elas se impõem. Que nem você disse: “eu não presto atenção”. Só existe um momento de união entre as pessoas, é a exploração, é o desvelamento. Depois de um tempo, as pessoas... derivam umas das outras, cada um entra pelo outro e vai seguindo sozinho, sozinho. (...) Eu não acredito em conhecer as pessoas. Não do jeito que as pessoas parecem acreditar. Eu acredito que todo mundo tinha mais é que se deixar em paz, mesmo, porque depois de um certo... tempo, não tem mais nada lá. Mas com carinho. Sempre. Eu acredito nisso, também. Carinho. Eu não acredito em – culpa. (...) Eu não acredito em hedonismo. (...) Eu não sou romântica, eu sou realista. O que eu chamo de realista. Uma vez meu pai me disse que não adiantava nada ter os pés no chão se o solo era de Marte. (ri)(...) Fazer o quê? A Terra já deu tudo que tinha pra dar."
(outro trecho do "Abecedário")

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Duílio (parte de um monólogo)


"Eu estou sendo vago, agora, mas é só porque estou sendo sincero, sinceridade e objetividade são coisas INTEIRAMENTE diferentes. A maior parte das mentiras que a gente joga no mundo é de uma objetividade massacrante. Eu acho que você devia me escutar bem. Eu estou sangrando isso tudo na sua camisa branca, porque de repente me parece certo que eu sangre tudo na sua camisa branca, de repente me parece absolutamente necessário que você SE ARREPENDA JUNTO COMIGO. Eu tenho direitos, eu tenho direitos e você sabe disso! Se eu nunca reclamei, é porque sou covarde. Eu me arrependo, eu quero que você entenda que eu me arrependo, da maneira mais amarga, de não ter reclamado MEUS DIREITOS quando isso ainda parecia possível, agora é tarde demais. TARDE, você me compreende? VOCÊ ESTÁ ME ESCUTANDO? Isso tudo é uma grande mentira e uma decepção ainda maior. (um pouco mais calmo). Uma decepção de proporções tsunâmicas, eu diria (ri levemente de si para si). Não existe amor, existe o ato do amor, de onde ele vem, ou por quê, não tem como saber, é um jogo de adivinhar. Há suspeitas, entretanto. HÁ SUSPEITAS. Quem diga que o Homem é a forma mais pura do desamparo, que tudo que fazemos um pelo outro é caridade, é filantropia irrefletida, que esse desespero de alívio e proteção pode fazer com que pessoas passem uma vida inteira juntas mas amor, AMOR -- qual é o espaço disso? Será que alguém no mundo ainda se leva tão monstruosamente a sério, será que alguém no mundo ainda confia tanto em si mesmo a ponto de dizer sim, eu estou amando, eu amo, eu amei? (...) EU AMO. A gente precisa disso, alguém me disse que eu preciso disso, então eu preciso disso, amor... (recitativo, irônico) estamos fuçando um lote de abstrações, meu bom jovem, uma capitania hereditária, o legado da necessidade suprema... ou qualquer coisa assim. (...)(esquentando) Você parece tão cansado. DE QUÊ, PORRA? Não de mim, certamente, eu estou me colocando a nu na sua frente pela primeira vez, eu estou fazendo esse vaudeville todo só pra você, você NÃO PODE ESTAR CANSADO DE MIM. (...) Foi um instante, eu me deixei convencer de que amava – VOCÊ – só agora COM TUDO CAINDO AOS PEDAÇOS eu entendo, só depois do bombardeio, só depois da chacina, ou pelo menos, SUPONHO que entendo. Meu Deus..."
(trecho de "Abecedário", roteiro que estou aprontando para um amigo)

Nocaute



Heaven
Heaven is a place
A place where nothing
Nothing ever happens.
(Talking Heads)


segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Quando Ele Vai Embora


Gostaríamos muito que ele não fosse embora com tanta freqüência. Só nós, aqui, sem ele, não tem como saber exatamente, ele é descontínuo. Há também a questão das espreguiçadeiras. Sendo o mais velho de todos, compete a mim levá-las de volta para a garagem na manhã seguinte, antes que a casa acorde, dobradas e empilhadas perto das caixas que não abrimos mais, fazem uma vontade danada de perguntar por quê, o que posso por mantê-lo assim quartzo, mica e feldspato, o ato de levar as espreguiçadeiras de volta para a garagem, eu faço, mas de vez em quando não dou conta, raia uma vontade danada de perguntar as coisas, de tentar entender, pelo menos, lembro de sairmos todos ao jardim certa vez, esperar o sol nascer, peneiras às vezes de máscaras, o elástico atrás das orelhas coçava. Ficamos aqui, dizendo um pro outro que sim, foi só o vento, Ada sugere o pôquer, para dar cabo de algumas horas não há coisa melhor que o pôquer, mas no fundo, no fundo, não seremos jovens demais? Será que não fizemos outra coisa que não esperar, esse tempo todo? Largamos nossos anos mais sólidos pelas vésperas. Nas frinchas e cotovelos do tempo. Ali um bocado, ali outro. Vejo que Artur está no alpendre outra vez, por favor, Artur, nesse frio. As barcaças jogando no longe que não quebra nunca, nunca, gosto de sal. Faço chocolate quente, o meu com um fio de uísque velho que eu não conto pra ninguém, as toras estalam na lareira, quando damos pelo toldo de noite já não temos mais nada a dizer. Recolhemos as fichas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Frank O'Hara


não seria como versar
o colapso de Lana Turner

os tempos vêm vulgares
dum jeito muito mais vulgar.

Já versar a vulgaridade
a indelével vulgaridade
dos tempos que nos vêm

é cousa, quiçá, alhures
-- não se usa mais

e ponto.

A cada comentário
metido à besta que faço
arrancam um par de asas
a Jimmy Stewart. Ouço-lhe o
choramingo todas as noites

é desconcertante; o buggy
de sonhos de ponta cabeça
no acostamento.

Toda literatura consumida esse semestre
deve destinar-se à nobre empresa
de me tornar um sujeito cínico.
Não espirituoso. Cínico.

Angular semi-cerração de pálpebras
e principalmente, nada de sorrisos
largos enquanto não endireitar
esses dentes (quatro mortos,
alguns meramente escandalizados).

Frank O'Hara


"I am the least difficult of men. All I want is boundless love."
(Frank O'Hara, "Meditations in an Emergency")

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

It's Raining Today (Captação Imagética 101)


but once there was summer and you
and dark little rooms
and sleep in late afternoons
those moments descend on my windowpane

Faz o seguinte, você pega seus olhos e depois mira. Depois reza pra ficar. Pra qualquer coisa remanescer empedrada nos olhos que não se deixe biodegradar, que não se suma na Natureza pra depois virar petróleo.
Neste retrato meu que minha amiga fez tenho os lábios repuxados numa careta revulsiva e meu perfil é duro quem sabe talvez por ser outubro dum ano terrível. Minha cabeça encima uma camiseta listrada em semitons de vermelho vestida certa feita pra conhecer o amor monumental. Lembra-me bem daquele finzinho de verão e do sorriso que benvindava à soleira apesar do pé machucado e do calor. Mais perfeita ainda é a lembrança de não saber do entrecho e muito menos do desfecho. Eu me pego querendo ser inocente de novo. Mas penso bem e não escapo à conclusão de que essa inocência só existe porque parasita entrecho e desfecho.
O desenho vai sumarento de cores, meu cigarro parece alegre. No ponto de ônibus o modelo falou uma porção de bobagens à retratista que na verdade só queriam dizer: você já viu as cores e cumpre agora mantê-las, assim explosivas, assim viventes. Para a vida inteira e isso não excetua a tristeza. Porque haverá momentos de tristeza e eles não se contentarão com o preto e o branco (é cruel, eu sei). Basta lembrar do nosso amigo Ben na piscina, "A Primeira Noite de um Homem".
Você faz assim: enquadre, não se furte a buscar o ângulo mais bonito, um que inclua uma quina de estante de madeira ou a copa de uma árvore em dia de vento. Orquestra bem tuas despedidas. Se lhe aprouver, cantarole baixinho um tema bem pontual, para cravo, violino e pistão. Porque a vida, minha amiga, não é um filme.
(Outra lembrança: fizemos a Gustavo Sampaio de madrugada, eu e esse amor monumental, e eu disse: "Tudo o mais falhando, vou tirar disso umas imagens bem bonitas". O que era mentira, mas isso não vem ao caso. Não, definitivamente não vem ao caso.)

domingo, 4 de novembro de 2007

Na Livraria




NA LIVRARIA
(parceria minha com Alice Sant´Anna)

Passo o dia inteiro
Aqui, as mãos para trás
Toda bons dias tardes e noites
Todos custando tanto a passar
Soldadinhos de chumbo têm destino melhor
Que ler as mesmas orelhas todos os dias
Até sabê-las de cor

Vamos jantar? Eu conto um sonho
Em que as prateleiras se põem a girar
Todas as letras, as belas, as feias
Erguendo um alto mirante pro mar
Ele faz que sim com a cabeça
Diz que me entende
E eu não sei mais o que é livro e o que é gente.

domingo, 28 de outubro de 2007

Complicações Com Um Banco


Do oco de lá, caixote de vidro no meio da avenida, via as gentes passando rápido em oposição ao vento. Não importa a direção que tomavam, era sempre investir contra, atacando as pedras da calçada com pasmosa decisão, a polvorosa dos cabelos. Pareciam muito encontrados naquela indisposição de manhã fria. Excessivamente encontrados. Incomodamente encontrados. Sabiam as coisas e a operação das coisas, uma força sem guia nem mapa, só tração. Estranho mesmo eram as coisas (e a operação das coisas) não lhe parecerem de todo estrangeiras. Do oco de lá, silêncio zumbido que mais parecia máquina, até que eram bem familiares, com uma única diferença: estarem do avesso -- sinfonia taluda que alguma orquestra executasse de trás pra frente. Idem as instruções de uso, as letras ele conhece, mas as palavras que constroem não têm parte alguma em si. O que não encaixa, mas tem existência. O pensamento sempre favorecia o que não tinha encaixe, desfechava-se lá sem o mínimo pudor.
Agora um arranque da consciência e ele contrafigura experimentos com macacos: colocar o objeto quadrado na fôrma quadrada, o objeto oval na fôrma oval. A sinfonia de trás pra frente não encontra fôrma nenhuma, mas se acidenta, e ele torna a pensar em poesia. Do oco de lá, a sensação de ferragens. As gentes passando sem tanto mistério.
(do conto "Complicações com um Banco")

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Buster Keaton


Em represália, dou a cada dor antiga o nome de um comediante.

(Buster Keaton me pegou pelas canelas ontem à noite)

O Cinematógrafo das Letras


“Fragmentar a imagem do mundo é uma coisa; pôr em risco um ego scriptor todo-poderoso, outra bem diferente. Porque isso acarreta, quando nada, tirar o solo de uma definição estreita, mas dominante, da lírica enquanto expressão de uma capacidade artesanal 'invulgar' ou de um eu que se confessa ou se projeta sem cessar sobre os mais diversos objetos, temas e situações enfocados. E, perdido esse eu sobre o qual se tecem, em geral, as significações no poema, passa a ser necessário trabalhar formas diversas de construí-las. E, testando impessoalidades irônicas, multiplicar as máscaras e deixar que se justaponham ou confrontem, em montagens imprevistas, discursos e imagens diversos.
São necessários, então, verdadeiros exercícios de tiro ao alvo. Exercícios em série. Como as muitas glosas da poesia enquanto quadro histórico que se sucedem em Pau-Brasil(1925). Ou como a invasão pelo reclame de uma possível cena íntima em 'música de manivela', do mesmo livro de Oswald:

Sente-se diante da vitrola
E esqueça as vicissitudes da vida
Na dura labuta de todos os dias
Não deve ninguém que se preze cuidar
Descuidar dos prazeres da alma
Discos a todos os preços.

Poema no imperativo, como a forçar uma compra. Frases meio mecânicas, à maneira de gravações; repetições automáticas de um anúncio que se parece saber de cor. Poema sem sujeito ou interlocutores definidos. A um passo do 'produto industrial'. Espécie de olhar demolidor em direção à poesia em busca de profundidades e almas, em 'música de manivela' o prazer e a felicidade se compram e se encontram nos mais diversos magazines, 'a todos os preços'.
O oposto das indagações atormentadas de um Raimundo Correia, por exemplo, num poema como “Fetichismo”:

Homem, da vida as sombras inclementes
Interrogas em vão: - Que céus habita
Deus? Onde essa região de luz bedita,
Paraíso dos justos e dos crentes?...

Em vão tateiam tuas mãos trementes
As entranhas da noite erma, infinita,
Onde a dúvida atroz blasfema e grita
E onde há só queixas e ranger de dentes... [...]

Interrogações que do desespero metafísico passam à charge se se contrapõe a elas um texto como 'aperitivo', da seção 'Postes da Light', de Pau-Brasil:

A felicidade anda a pé
Na Praça Antônio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus

Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos

É difícil ler sem certa ironia este 'que céus habita Deus?' quando se descobre que 'a felicidade anda a pé', quando imagens profundas ('as vicissitudes da vida, os prazeres da alma') e vocabulário vistoso servem apenas de recurso a mais em algum reclame de discos e vitrolas, quando 'foguetes pipocam o céu de quando em quando'.”
(Flora Sussekind, "O Cinematógrafo das Letras")

domingo, 21 de outubro de 2007

sábado, 20 de outubro de 2007

Susan Sontag


“We know more than we can use. Look at all this stuff I’ve got in my head: rockets and Venetian churches, David Bowie and Diderot, nuoc mam and Big Macs, sunglasses and orgasms. How many newspapers and magazines do your read? For me, they’re what candy or Quaaludes or scream therapy are for my neighbors. I get my daily ration from the bilious Lincoln Brigade veteran who runs a tobacco shop on 110th Street, not from the blind news agent in the wooden pillbox on Broadway, who’s nearer my apartment.
And we don’t know nearly enough.”

( Susan Sontag, “Debriefing” )

Geórgia na Estação Uruguaiana


"Hoje à noite fazemos a experiência (impagável) do óbvio ululante. Hoje à noite é uma porfiada análise do dois mais dois. Sim, vamos a isso: em trajes de safari. Monocromo, monofase. Vamos estripar o átomo (ele nunca me amou). Vamos jogar o átomo num fosso sujo (tudo mentira tudo mentira).
Estação Uruguaiana, 19:30.
Não há mão que me encoste no ombro. Não tem nada. Silêncio.
Nada além dessa indiferença modelar, marulho vago e enjoado de dezenas e dezenas de rostos que passam, em nada ficando; afogamento por multidão, doutor. Nada além dessa indiferença modelar, esse tédio incrível, esse tédio incrível que nasce o amor, pensando em nada que chego nele, o cinzeirinho de argila que aprendemos a fazer na Oficina do Diabo.
Talvez seja mais fácil ser inocente com as mãos sujas de sangue.
Ligar pro Maneco, preciso conversar com alguém, não agüento mais ficar quieta."
(do conto "A Desatenção")

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Os Imbecis


os imbecis têm cheiro de debaixo
de orelha de velha do interior
são como se sabe uma planura sem fim
e cada vez mais fácil reconhecê-los
numa multidão nunca se ouviu tamanha
ternura votar-se à própria voz
os que se gritam de madrugada plena
praça quinze juntos são um carvalho
medindo forças com o próprio tempo
era a tomada de Constantinopla e os
imbecis com seus chapéus perguntando “quê?”
e era o meio do filme e os imbecis
dizendo do sonho que tiveram noite
passada

os imbecis como se sabe
um pires ou um jingle de desinfetante bucal
é assim que sabemos os imbecis
salvo se seja imbecil também

os imbecis têm vivenda segura
nas canções do Brel
os imbecis articulam
coisa alguma
incansavelmente bem

os imbecis
isso é importante
os imbecis não queimam os cílios acendendo cigarro no fogão
os imbecis ao invés mentem o isqueiro que lagarteia no bolso
e dizem, por que você não acende no fogão?
não tem problema pode ir
eu faço isso o tempo inteiro

os imbecis
nem te deixar cantando sozinho na porta do colégio
eles deixam

é preciso arrebatar-lhes a palavra
não há destino mais cruel para a palavra
que acabar entre os dentes dum imbecil

(ai, o branco metódico
dos dentes
dos imbecis!)

os imbecis gostam de fazer espetáculo
da idéia arrancada a fórceps
e valquírios esfregam na nuca
dos demais convidados
a placenta sorridente do que não deu pensar

os imbecis como se sabe
revolucionaram o telejornalismo brasileiro nos anos oitenta
porque usavam seus cabelos cacheados
para telegrafar o mundo

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Cartografia



I.

Lembra-me o tio que – tão casual – lamentava
-- versos libérrimos --
casório temporão inquilinas imprevistas na mulher-baleia
expectoradas com gala vividas no horror
no tropeço na arritmia.

Senão as odes marítimas do avô
o classicismo singelo
o amor imperioso sublime --

devo admiti-lo
pelos idos do rosto liso
todo assombrado do mistério das coisas --

uma chispa de inveja?

Quietos de distância ou morte
já não me levam na mira
entanto goteja nos canos
a lágrima gorda
é a mesma lágrima gorda.

Grandes grandes
como a gente de nossa infância
será sempre grande
sempre odiosa e grande.

II.

A ferrugem; a precariedade.
Gotejam nos ossos meus ossos
as loas longas ausências e lentidões

meu sossegado alcoolismo suburbano
ah
tem me posto trêmulo
ah

(refrão)

tremulam palavras canos ossos dor monstruosa que veda a noite

meu sossegado alcoolismo suburbano
não mente. O trato às soberanas da Lapa
não mente. Por fim a entrevação
não mente – leque de cartas sobre a mesa. Vivíssimas.

III.

Que vida folgam essas unhas
nos meus nervos? Que vida
se me parte e se exonera da
carne própria pele pêlos para
refazer-se a mãos alheias?
Que ferruginoso sangue pelos canos
burilando burilando? Que imunda
tristeza de confissão?

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O Vago Parente


"O cantor de quiosque é um bicho notável. Habita névoa, sereno e cadeiras de plástico. Vive de hits do momento e êxitos incontornáveis. Meu vago parente parecia levar isso muito à risca: traduz-se, um repertório de mocinhas de pouca conseqüência, rotativas – e o folclore irrecorrível do primeiro amor. No meio desse parangolé todo, havia esposa e duas filhas. Jazia esposa, duas filhas. Como era de se prever, cansaram e deram no pé, em grande estilo. Isso foi em Niterói, isso foi há muito tempo atrás, isso foi o primeiro divórcio. Agora meu vago parente anda no terceiro. Perdeu a voz, abalofou, ficou grisalho, voltou pra casa da mãe -- dá telefonemas de madrugada e vive de fazer empréstimos pra velhinhos. Falta pouco para que se torne um velhinho ele-mesmo, mas pelo mancar da carruagem, talvez nem chegue a tanto. Ele coloca a garrafa vazia de Sangue de Boi atravessada na pia enquanto adoço meu café, nossas pegadas se fundem sem encontro. De vez em quando ele tosse de madrugada, parece que vai vomitar, espero do meu quarto o passo corrido até o banheiro que somos forçados a dividir o resto do dia (nossas toalhas em extremos opostos do cômodo, etiquetadas), nada, não sei nada dos barulhos que ele escuta quando há gente aqui no quarto, de vez em quando eu bebo demais e surge alguém, de vez em quando eu bebo demais e não surge ninguém."

(outro trecho de "Todo Mundo, ou Novas Possibilidades Para Uma Fossa Insublimável")

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Alice Sant´Anna


"naufragou. O ator
está nu está só
sem palco ou platéia
sob o sol de meio-dia (supõe)
não sabe se morre de tédio
inventando ampulhetas – é preciso
contar o tempo, segundos de areia
no horizonte encurvado. O ator
disfarça as ondas que quebram
e por pouco acredita que são
aplausos, súbito anoitecer e cair
do pano estrelado."

(Alice Sant´Anna)

Amanhã é ela no CEP 20.000, lá no Jóquei. Garanta já o seu ingresso, quem avisa amigo é.

Matita Perê


"Um tal de Chico chamado Antônio
Num cavalo baio que era um burro velho
Que na barra fria já cruzado o rio
Lá vinha Matias cujo nome é Pedro
Aliás Horácio, vulgo Simão
Lá um chamado Tião
Chamado João."

(Tom Jobim / Paulo César Pinheiro)

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Inventário (Integral)



Tramas mais abaixo, encruzilhadas no Protex.
Ainda uns fios de cabelo metidos entre a fronha e o travesseiro de plumas de ganso.
Mealhas de barba que a gilete não quer largar.
Pro remate, a queimadura que seu cílio desgarrado fez na ponta do meu dedão, e seu desejo valsando das retinas, indo ter com as autoridades competentes.
Não sei ver as horas no relógio dele, é muito complicado. Derrubou vinho barato no meu Cortázar e eu devo ter achado aquilo poético, em alguma medida, por que senão. Senão o quê? Nada. Nada não: nada. Se é no mesmo silêncio que adoço meu café com as medidas dele, vaga lembrança de tomá-lo muito amargo no princípio, e com gosto, quase bravata. Era eu, suponho, subtraído a todas essas miudezas (a caneca dele inclusive). A dívida de uma coxinha com recheio de catupiri, contraída a Setembro do ano passado, me enfurece estupidamente de uma hora pra outra.
Esquece uma camisa aqui em Abril, meses depois ela ressurge, passe de mágica, das profundas do armário, um pouco descosturada onde a manga esquerda faz esquina com o resto. Falta um botão. Que é dizer: não bastam todas as faltas do mundo, não, de modo algum. Há ainda o penúltimo botão da camisa que ele esquece aqui em Abril, imprescindível que haja. Note-se, estou contando de cima para baixo (março, fevereiro...). Era noite de Ano Novo e ele pelado na frente da minha família toda, começou a pregar. Arrastei-o do parapeito até a porta (gosto, quase bravata) e haveria de ser pra nunca mais. Nunca mais, ouviu bem? Saldo: um maço de Marlboro, um pacote com três camisinhas, vinte contos. Grande, grande. Só não esquece a cabeça porque não tem mais.
Agora, adianta alguma coisa? Vamos, com toda sinceridade.
Se quando apago a luz do quarto, tudo que ele tocou se estrela, e eu passo a noite em claro tentando dar nome às constelações. Abril, maio, junho, desatinei de prosa e poesia: peguei mania de inventário. Há certa ciência do resto, de resto, pouco se me dá. Um dia eu vou ficar velho, cansado e parnasiano, e ele vai continuar perdendo vôos e me telefonando de madrugada, perguntando se tem lugar no meu sofá. Então, será um riachinho de baba na almofada muito branca, e três baganas enfileiradas na tábua corrida amanteigada de sol, uma manhã como outra qualquer. É outubro, novembro, dezembro, e o que me sobra: um par de cuecas azul-piscina, um desenho tosco dum menininho segurando a minguante por um cordão.

domingo, 7 de outubro de 2007

Reds


eu vivo só mas ninguém sabe
num sonho de portas pantográficas
meados de maio
com chuva e livros pelo chão

eu vivo só mas ninguém sabe
monto tendas na varanda
chaveio descampados
e apago as luzes
daqui só se vê Vênus
eu vivo só e ninguém sabe

de vez em quando eu tomo o telefone nas mãos
penso em ligar pr'alguém bastante remoto
e dizer
você não sabe
qu'eu vivo só

e apesar de tudo

dizer um mês do ano
uma estação
um número
qualquer
ajuda
eu esqueço

não entendo por que deveria ser tão difícil
não gosto das nem me conformo com
as rachaduras nessa gente
eu vivo só (dez tons acima)
ninguém vota em mim

eu vou a casamentos
e chás de panela
e chás de bebê
e open rooms
e lançamentos
e bares
e discotecas
e a outros países desse absurdo sudamérico
ninguém vota em mim.

sábado, 6 de outubro de 2007

O Pequeno Regimento Sobe A Costa


quando a gente ficar velho
vai ter que apertar os olhos
mas as coisas não vão se esclarecer

ele disse
e não só

aprendi muitas coisas nessa vida
dignas dos que me passeiam
aprenderem idem
por exemplo

jane suas festas são uma droga
seus convidados tentam
mas não conseguem apreender o que você entende
por diversão
por nada nesse mundo

receber é uma arte
uma arte menor, mas ainda assim
uma arte

até as almofadas parecem vagamente eriçadas

você vai mesmo projetar os slides
de Tralfamadore
de novo?

viagem no tempo é um conceito tão antiquado
todo mundo sabe que você está mentindo
mas você continua

redondamente convencida
de que esse é o seu charme

no nosso meio no nosso meio no nosso meio é assim

ele disse
e não só
por exemplo

é gostoso tomar café com o sorvete
e o loteamento da lua
certas pessoas têm tanto dinheiro que compram ilhas inteiras
mas há quem consiga ler cem páginas por noite antes de dormir
as pequenas coisas
a física quântica
o estado da comédia italiana

jane você é uma anfitriã nervosa
e seus convidados adoecem parentes inventados
com muito mais freqüência do que você imagina.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Juvenília, o que é, a que veio


“I. concorda e vai na minha esteira, tentando equilibrar seus embrulhos, falando do livro ininterruptamente enquanto assinto repetidas vezes com a cabeça e o duplo-sorriso, diz da dificuldade que é concentrar-se nos tempos que correm, a dificuldade imensa de tentar abordar os sentimentos grandiosos (os sentimentos grandiosos!), quando tudo hoje em dia parece estilhaçar-se à força da investigação mais superficial, e a pressão de fazer a vida, deixar a casa dos pais, com quem I. alega ter relações destrutivas, sutilmente destrutivas, mas ainda assim, destrutivas, ademais, certa letargia generalizada que parece predar nossa geração, se bem que, como diria F., conhecido de I. que desconheço, não tem mais isso de geração, I., é só um bando de gente junta (por alguns instantes penso gostar mais de F. do que de I., mas não tenho o menor interesse em conhecer pessoas novas nesse momento da minha vida), mas o livro, o livro caminha, diz. I. ter uma coleção admirável de primeiras páginas, esboços, notas, apontamentos, lembretes, correspondências, cadernos e mais cadernos que vem acumulando há mais de quatro anos, e que o esforço agora é de coligir esses fragmentos de modo a conseguir um todo coeso, uma mesma temática, uma mesma questão, já que se sente tão pouco facultado a atacar de frente (suponho que queira dizer “linearmente”) o que quer que seja que tanto lhe atormenta(...)”
(do conto “Complicações com um Fantasma”)

Os mais chegados sabem: tirei 2007 para escrever. Deu um estalo. Desse ano não haveria de passar. Provável que passe, pouquinho que seja. Mas o fato é que desde o primeiro trimestre desse ano de 2007 minha ocupação primordial tem sido essa, o “Juvenília, ou Novas Possibilidades Para Uma Fossa Insublimável”.
Quando comecei a trabalhar no livro, ainda nutria a ilusão de que pouco ou nada mudaria. Toda decisão radical que a gente toma acaba coadjuvada por um desejo masmorrento de que nada se altere radicalmente. Pelo menos comigo é assim, e eu acho engraçado. A gente arde de vontade que as coisas sigam seu curso, os trancos e barrancos que a gente já conhece, teria essa vantagem, pelo menos. Daí que a vida ministra uma sucessão de pescotapas na gente e chega o segundo estalo: as coisas mudaram, mudaram um bocado. A decisão está tomada. Ter volta, até que tem, só que no mundo. Na gente não.
Andei lendo um Cortázar pecurrucho bonito como só (o infeliz não erra), “Diário de Andrés Fava”. Em algum momento o diarista titular diz: “Gradus ad Parnassum, Czerni, arpejos – a técnica. Mas o piano não muda, limita-se a modelar o homem, a fazer dele um pianista, um homem-piano, um servidor que corre o mundo de fraque preto. As mãos livres transformam-se em mãos hábeis para... (Um martelo, um cartão de enrolar cigarro – problemas do outro mundo; a mão do pianista é cada vez mais do piano e cada vez menos do homem)”. Bem por aí que a coisa vai. A gente se deixa engolir pela vivência nova, começa a ser em torno dela, cozinhar uma rotina que, se não difere em tudo da antiga, implica forçosamente numa nova perspectiva das interseções. De todas as vezes que eu tentei, cortejei a idéia de escrever uma coisa de alguma conseqüência, não quis abdicar de nada e entrei pelo cano. Multi-tasking não é comigo. Parabéns pra quem consegue, mas eu não dou nem pra acender cigarro andando. Os mais chegados sabem. 2007 foi ano de parar tudo e tentar entender o que diabos se podia fazer dessa maluquice toda.
Há alguns meses atrás mandei as primeiras cinqüenta páginas duma primeira versão do “Juvenília” para um concurso. Resultado só em dezembro. Assim como (creio eu) o resultado final do Contos do Rio (tem conto meu entre os dez finalistas).
Tenho recebido críticas extremamente pertinentes, positivas e negativas, no mais das vezes da parte de amigos próximos, em cuja opinião voto a máxima confiança. Tenho trabalhado obsessivamente nos pontos que considero e foram considerados falhos, tentando sempre me manter fiel a uma certa pesquisa de linguagem que tenho empreendido e a um certo viés da ficção que quero muito compreender melhor. Tenho entrado em espirais perigosas de auto-didatismo sem farol, perdendo mestres estupidamente e vendo alguns dos precitados amigos se mandarem do Balneário pra fazer a vida onde tem vida a se fazer. Tenho sofrido decepções acres. Tenho embarangado seriamente e bebido feito um lorde sempre que possível. Fui parar num maço e meio quase dois por dia. Tenho fugido, tenho voltado, tenho pensando em fazer bioenergética, tenho tido pesadelos freqüentes em que recebo envelopes de papel pardo e não consigo abrir o lacre. Aqui que o medo faz ato de presença inevitável. Será que dá? É possível? Vale a pena? Quem está fazendo as coisas, e como?
A gente bate no peito pra dizer uma desilusão que, a rigor, ainda nem chegou. Fico pensando no Cioran, que dos píncaros do desespero não parou de escrever nunca (que fosse compulsão, e não saída, ainda assim era algo como sentar no mundo uma certa visão de mundo extremamente particular, deve ter havido um motivo pro cara não parar, certo?). Fico pensando horas e horas a fio no verbo/ato “bancar”. Não dizer “estou escrevendo um livro” como quem diz “desculpa, machuquei seu pé?”. O que não é falar de orgulho. Não estou falando de orgulho. Orgulho do que quer que (se) seja é pecado e Deus relampeja. Estou falando de um certo estado de coisas que só se dá com extremos: sótão e porão de um narcisismo que, por força das circunstâncias, do nosso gosto inerente pelo cliché, já se tornou marca-registrada de quem quer fazer a vida escrevendo. O ideal? De enunciação pausadinha e sensata, estou escrevendo um livro, sim, a família, como vai? Ah que surpresa o planeta não parou de girar veja você.
Utopia é o que é sem lugar. As coisas mudam, elas não têm escolha. Dezoito baganas perfiladas sobre a mesa do computador, xícaras de café por toda parte, a puazinha no estômago que pra breve aflora em úlcera. Um trabalho danado de trabalhoso e já começo a contrair minhas primeiras dívidas com essa entidade ubíqua que é o Banco Bradesco. Chego a pensar em proporções inversas, que nem “O Arquivo” do Giudice. Estou até o pescoço de coisas por revisar, deadlines auto-impostas e tudo isso é saber que a gente não chegou nem no primeiro andar, é a angústia de dizer o mundo e a angústia de estar no mundo que se quer dizer, e é uma angústia sem movimento, sem revolta, sem alternativa, sem mãos dadas, muito pelo contrário, se alguém acha sua angústia mais coloridinha e bem-torneada vai lá e te chuta os cornos. Já disse que fico pensando horas e horas a fio no verbo/ato “bancar”? Pois. É bem por aí que a coisa vai. Desde sempre a gente sabe que não tem saída, e até o quadragésimo quinto do segundo tempo há esperança de que uma janela secreta se escancare. Ela não se escancara. Tem pouco lá fora além da nossa vontade. Não significa alcançar. Não significa redundar em nada. Significa exatamente isso que se disse: tem pouco, mas muito pouco mesmo lá fora além da nossa vontade.
Vontade de sentar no mundo o que eu entendo por mundo, tenção vaidosa, tudo o mais. Segundo o planejamento corrente, estou a 30 % de terminar “Juvenília” de uma por todas as vezes, e me dou até o fim do ano. Quero escrever mais sobre escrever, de maneira mais responsável. Vou ver se faço isso mais vezes, que seja pra nada, mas que seja. Não vou cometer o absurdo (aqui) de dizer que estou ficando velho, mas em tempo, sim, mais cadenciado, apitou-se o fim do jogo. Por exemplo, hoje vou extrair um siso.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Pierre Reverdy


THE FINISHED RUIN

I have lost the secret given me
I no longer know anything

For a moment I believed that that could go
Nothing remains any longer
This is a man without feet who wishes to run
A woman with no head who would like to talk
A child with hardly any eyes only for crying

However I have seen you depart
You were already distant
A trumpet sounded
A mob shouted
And you, you did not turn around

We have a long road to follow, step by step
We will walk it together

I detest your smiling face
The hand that you extend to me
And your sucked in stomach so old
You are just like me

On my return I did not receive anything
No one gives me anything
All is spent

A useless piece of decoration
In the night

(Pierre Reverdy, traduzido por Tom Hibbard)

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

No Que Não Pensar Agora


Da primeira vez que saí da sua casa eu estava tão feliz sabe eu tomei um picolé de limão. Dois anos mais tarde eu saí da sua casa de novo e eu estava em êxtase, então comprei uma cerveja e quando um sujeito me pediu um cigarro na rua fiz questão de oferecer logo dois, dadivando: pra viagem. Pra que ninguém veja, não estou pensando nessas coisas agora, vou tirar o prato de cima do abajur e pendurar um quadro, tomar nojo da camisa embolada no canto do quarto há dias e esvaziar o cinzeiro e vamos, tentar pensar em outra coisa, sim, tente se concentrar, é o que se prescreve, vou martelar um prego às três da manhã, encharcar o corpo de suor e me sentir apocaliticamente viril, vou acordar a porra do prédio inteiro, vou me concentrar em acordar a porra do prédio inteiro, porque eu não estou pensando nessas coisas agora e é preciso que todos saibam.

Chance


Ou bem você me toma agora, ou é a empresa peçonhentamente decorosa de seguir em frente. Pior: sem amargura. Não haveria motivo, não haveria razão no mundo para arrependimentos, viv´alma pra sentar ao banco dos réus nos pesadelos que se predizem. Ainda, é exatamente como deixar com cada pessoa que te cruza o caminho um pedaço de si que não se recuperará. Toda a gente devia ter consciência disso. É da generosidade e do desprendimento – virtudes que, como se sabe, só nos chegam pela penúria, pela auto-imolação. Se de fato existe um Céu, aposto que há Nele um bocado de nuvem particularmente celeste, uma espécie de Monte Carlo do Valhalla, exclusiva aos amantes mais aplicados. Enfim, divagações.

domingo, 30 de setembro de 2007

Beto Geada



Tomei a estrada menos viajada
E isso não fez diferença nenhuma.

Réptil de Lupanar



Setembro de 2007, Café Tortoni





cortesia de Barbara Marques

sábado, 29 de setembro de 2007

Recuerdo


ou As Coisas Estão No Mundo, Só Que Eu Preciso Aprender


não, não, o relato portenho começa aqui, ido, volto, 70 % dos originais largado num quarto de albergue que não o meu, meu caderno, uma peça do Thomas Bernhard, o jato que me deixo ser ganha San Telmo, aceno o primeiro táxi que passa pela rua, a rua que eu não sei o nome, o homem que eu não sei o nome, o homem que é série de números impressos numa carta de identidad e uma três por quarto borrão que nem se reconhece, a faxineira diz num sussurro que o desayuno está pronto mas não, o relato portenho começa aqui, e tem que ser urgente pra saber que é sem aeroporto nem escada rolante nem elevador nem banzé no check-in, não tem desayuno nem coisa nenhuma, é à memória do melindre largado na Calle Defensa pra fazer baile na tarde que os tambores despenham, ir fazendo e refazendo a corte da força e da beleza, fazendo e refazendo os carnavais de estrangeirismo, balançando estardante de James Dean, o vento e o medo que bebi ostensivo, largo, anfíbio, nos bares do centro e de Palermo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

FAVOR TOCAR


Sim. Não não. É é esquisito não tem como saber o que passa na cabeça das pessoas, né? Tá lá escrito na plaquinha. E o meu trabalho é ficar aqui dizendo: pode mexer, mexe aí, né? O artista quer que você mexa. Mas as pessoas não mexem. Lá no canto tem o tonel, lá, ó, tá vendo? Depois pergunta pra Ângela como é que é. Um suplício. A gente não pode obrigar as pessoas a fazer nada. A Ângela fica lá o dia inteiro, coitada: pode entrar, entra, o artista quer que você entre, ele só fez isso pra você poder entrar. Tem lugar pra deixar bolsa, sapato, carteira, chave. Tudo. De graça. Mas as pessoas não entram. Elas passam, fazem uma cara assim de quem tá comprando peixe na feira. Mas não entram no tonel. É esquisito, a gente não sabe o que acontece na cabeça dos outros. A gente é pago pra dizer pras pessoas que pode, mas as pessoas não querem. Ninguém quer entrar no tonel.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Urbano


Sobre flores:
jogar no lixo a rosa murcha do aniversário
expiação mediante vasinho de violetas
tirar poeira da margarida de plástico
sobre o arquivo

minha amiga alérgica a pólen
diz que é entrar num orquidário
e começa a espirrar

minha mãe se alarga toda
quando aventa:
peixe é um bicho estúpido

não, não sei, mas é de considerar
talvez
o vago parentesco entre a flor, o peixe
e o terremoto, o furacão

evito pisar na grama
na areia
cheiro de canteiro molhado me põe nervoso
a ameaça constante do que espreita por nascer.

domingo, 16 de setembro de 2007

Thomas Bernhard

"´Falar com pessoas que acabamos de conhecer é cansativo e nos faz pensar. Divertir-se às custas delas não é correto; levá-las a sério tampouco é. Trata-se sempre da velha questão de saber até que ponto se deve fazer contato, se se deve mesmo fazer contato, não acha, doutor?... Contatos´, disse o príncipe, ´... como o senhor costuma dizer, doutor, só existo na medida em que faço contatos etc.... mas isso desperta sempre em mim o elemento irônico da minha personalidade... A ironia que atenua o insuportável... Deter-se na fronteira da neurastenia... Penso: fui amável demais com Huber ou fui pouco amável demais com Huber? E como me saí com Zehetmayer? Porque a idéia de ter sido demasiado amável ou demasiado pouco amável me acode sempre de súbito quando alguém vai embora. Entretanto fui bastante amável com Huber, penso. E também com Zehetmayer fui bastante amável. Com quem fui menos amável foi com Henzig; foi uma conversa muito curta, um encontro, um insultar-se com antipatia. Henzig, penso, é o administrador ideal´".
(Thomas Bernhard, "Perturbação")

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Oi, Futuro!



Malta; tem treta imersiva lá no Oi Futuro, no Flamengo. Trata-se da Blooks – Tribos & Letras na Rede, um panorama dos Novos Novíssimos com curadoria de Bruna Beber, Heloísa Buarque de Holanda e Omar Salomão. Passem lá, tá super-bonito-pra-dedéu.

Tem conto meu lá, aliás. É esse daqui:

A VERDADE

É muito difícil – para mim, ao menos; os outros aparentam gosto – você seguir vivendo.

A coleção de Barbies de minha dentista. Incontinenti recordo o consultório na Bergasse, número 19 – a profusão de bibelôs de antes do dilúvio, prateleiras, prateleiras. Sigi, seu rosto cortinado de fumaça azul. Estou divorciado de boa porção de minha boca agora: uma bacia, um sugador, um ancinho. Breve a assistente coxeia sua entrada, empunhando meu novo pré-molar de acrílico, a mesma ladainha do marido subitamente sustado por infarto fulminante – chamá-la-ei Igor a partir de agora.

Depois da faxina, a empregada tem por sestro sentar-se frente à porta dos fundos – naturalmente, aberta – e observar o corredor mal-iluminado; estará ideando planos de fuga? Estarei eu? Será necessário dialogar mais? Leva-se uma vida pacata aqui. Ademais, é muito bem-paga; as dependências espaçosas e confortáveis, muitas paredes para seus diplomas e colagens e o eventual slogan revolucionário.

Haverá real necessidade de tantas interrupções tolas? Meus vizinhos de cima decidiram reformar o banheiro; o barulho é insuportável. Assim não é possível trabalhar. A tirania rítmica das pancadas – tump... tump... tump... – alonga por demais o trajeto do meu escritório até o banheiro.

Nada sei do motor a nossa distância. Faz três anos que o assunto me ocupa, o que deu origem à tetralogia “Decisão Liminar Temporária”. Encontro seus amigos em eventos literários, indago de seu paradeiro, eles a) calam b) desconversam c) discretamente pedem que eu abaixe minha pistola. Peço-lhes que me refiram a você: digam que estou emagrecendo, que já não sangro mais em público com tanta freqüência, que resolvi, afinal, trocar os dentes que não me serviam por outros mais apetecíveis ao senso estético do comum. Mas sei que essas informações não lhe chegam; ou lhe chegam distorcidas, irreconhecíveis. Exatamente por isso que não mando mais cartas: temo que as palavras se baralhem no caminho e formem sentenças novas, sobre as quais não teria responsabilidade alguma.

Não tomo do absurdo nenhum grande alívio.

Escusado dizer que, na cidade, as pessoas não são como coelhinhos tristes. Portam-se mais como imensos rinocerontes que sofrem de enxaqueca, e se agastam com a lentidão do tratamento homeopático. A lição mais pertinente que se pode auferir de um passeio pelo Centro: precisamos com urgência de analgésicos mais fortes.

Certa feita, durante um colóquio, um sujeito me perguntou: o senhor não se sente nem um pouco culpado por não conseguir escrever em outra pessoa que não a primeira? Respondi: sinto-me TRANSIDO de culpa por não conseguir escrever em outra pessoa que não a primeira; assim como, em meu dia-a-dia, sinto-me TRANSIDO de culpa por não ser onisciente; ao fim do quê, pus-me de pé e levantei a camiseta, mostrando a todos os presentes meu umbigo pintado de tinta fosforescente. O mesmo sujeito que havia colocado a questão comentou, altíssimo: sim, todos nós já lemos “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”. Por favor, cubra isso.

Parece-me que, nos dias de hoje, as relações não mais se dão entre indivíduos, e sim entre as funções que esses indivíduos desempenham. Ponto pacífico que isto pode conduzir a vultosas complicações de cunho ontológico. Mas até o presente momento parece estar funcionando.

Naquela época, você era um Zé Ninguém, e tudo a seu respeito era promessa. Nós lotamos as arquibancadas, tão apreensivos que mal podíamos respirar. Sonhávamos sua próxima cartada. Agora seus quadros aquilatados em milhões, seus livros encabeçam as listas dos dez mais, suas canções, êxitos radiofônicos instantâneos. Você encontrou o corte de cabelo perfeito e o tom de voz mais adequado à consecução de seus objetivos, e seus amigos entrevistam celebridades nos fundos do Copacabana Palace para canais de tevê a cabo. Vingou. Vingou-se. Mas de quê? Nossos olhares petrificados nas arquibancadas, nossa incapacidade de tragar o oxigênio que se nos dispunha, nossa apreensão? Esteja certo, nossas intenções eram as melhores possíveis, ou pelo menos boas o bastante para que você permanecesse imóvel, bem no centro do estádio, de onde você nunca deveria ter saído.

Não temos mais motivo algum para perder o fôlego, nossas palmas em carne viva de tanto aplaudir. Todos mortos de cansaço.

O barulho tornou-se ainda mais alto. Abro a porta do escritório. Operários põem abaixo uma das paredes do foyer com picaretas. Por quê? Seu lugar é no andar de cima, tento informar-lhes. Não parecem escutar. A empregada observa, pálida, resignada, diz que fez o possível. Restamos os dois no cômodo, estáticos, rostos retintos daquele horror que se sente à exposição de uma alegoria particularmente óbvia.

Num frasco vazio de Higher, by Dior, pus uma oração à Nossa Senhora Aparecida. Depois joguei no mar. É ver no que isso dá.

Durante o mesmo colóquio: o senhor se sente confortável com o epíteto de escritor existencialista?
Macaco gosta de banana?
Acaso não terá sido... branca, a cor do cavalo branco de Napoleão?
Se nos espetardes, não sangramos?

No centro de um estádio, as arquibancadas lotadas. Sonham minha próxima cartada, mal podem respirar. Devo matá-lo? Devo matá-lo alegoricamente? Devo matá-lo de verdade e depois escrever um roman à clef narrando a experiência? Devo pedir à Gervásia (a empregada) que o faça, e em troca conceder-lhe permissão para usar maquiagem dentro de casa? É preciso apenas errar a mira; manter o ar irrespirável para os pagantes. Custou-me um bom bocado perceber, mas não há negócio mais rentável, no âmbito das simpatias, que o fracasso. A multidão delira.

Meu agente telefona e diz que a revista X. está pensando em contratar um novo crítico de teatro, mas, verdade seja dita, eu nunca vi uma peça em toda minha vida.

sábado, 8 de setembro de 2007

Vale Quanto Pesa


"Aquela madrugada deu em nada, deu em muito, deu em sol
Aquele seu desejo me deu medo, me deu força, me deu mal

Ai de mim, de nós dois
Ai de mim, de nós dois"
(Luiz Melodia)

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Pitonisa


pra Hilda

não acredito
que nunca mais vou arrumar
tuas estantes

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Nostálgico


Foi um grande inverno
novembro de 46
quando me apaixonei por um clarinetista
e a janela do meu escritório recortava
seis quinze avos de Torre Eiffel

não consigo pensar em ninguém
que não estivesse escrevendo um romance

açoitando de juventude
quantidades impossíveis de papel

salvo, talvez, o clarinetista

não consigo pensar em ninguém
desmusado
preciso fosse, escreveríamos para os percevejos
escreveríamos

como talvez o clarinetista chutasse latas de lixo
fizesse gestos obscenos para as freiras que flutuavam
nevosas pelos bulevares cuspisse na nuca dos meninos embecados
a caminho do liceu escreveríamos

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Pergunta

Como é? Ainda não cansou de se fazer entender?

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Última Instalação, Portal Literal

Malta -- já está no ar a última instalação da minha Curadoria no Portal Literal. Tentei a mão numas traduções, a saber, Laura Nyro, Frank O´Hara e Donald Barthelme. Na galeria, ainda clarões de Orides Fontela, José Paulo Paes e da queridíssima Alice Sant´Anna, além de alguns poemas meus. Confiram, comentem, esse negócio de escrever para si é uma lorota descomunal.
Para breve, novidades de banda também -- Os Subterrâneos estão se preparando para entrar em estúdio e aprontar um singlezinho Internético bem bonito.
E o livro da Cecilia Giannetti está uma coisa de louco. "Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi". Comprem pra ontem.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Lento

Outra: não éramos juntos então, mas andamos tão longínquos agora, que é realmente cada continente ancorando num ponto específico do mapa, so long Pangéia!, a ocasião de uma ou outra fronteira e só (digamos que se trate de um tempo emocional muito antes do trem-bala).

(trecho de "Todo Mundo", texto que estou aprontando para uma zine duns amigos meus de Curitiba.)

Mais!

Malta; a penúltima instalação da minha Curadoria no Portal Literal já está no ar -- Heleine Fernandes, Lucas Cureau, Bernardo Brayner e Fernando Paiva presidindo. Pra rematar, o conto que nomeia (digo, endereça) esse blog, "Sonetos: Oitava Série" -- algumas misérias dos idos do ginasial. Já dizia o poeta, "curtche lá".

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Segunda Curadoria no Portal Literal

Malta; a segunda instalação da minha curadoria já está no ar no site Portal Literal, agora com a participação especialíssima dos craques Marco Gondim, Pablo Araujo e João Francisco Costa Ribeiro, além dum conto novo meu. Passem lá, tá bonito que tá danado.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Copacabana Velha de Guerra

"Mão no bolso, riso lento e a tarde
Passando devagar
Não me encontro na vitrine, não ligo
É difícil me encontrar
Sou só eu na multidão e eu queria me ver passar
Desfilando com a camisa da cor do mar

(...)

Nós estamos por aí sem medo,
Nós sem medo estamos por aí
Nós estamos por aí sem medo
Nós sem medo estamos por aí..."
(Joyce/Sérgio Flaksman)

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Inventário

Agora, adianta alguma coisa? Vamos, com toda sinceridade.
Se quando apago a luz do quarto, tudo que ele tocou se estrela, e eu passo a noite em claro tentando dar nome às constelações. Abril, maio, junho, desatinei de prosa e poesia: peguei mania de inventário. Há certa ciência do resto, de resto, pouco se me dá. Um dia eu vou ficar velho, cansado e parnasiano, e ele vai continuar perdendo vôos e me telefonando de madrugada, perguntando se tem lugar no meu sofá. Então, será um riachinho de baba na almofada muito branca, e três baganas enfileiradas na tábua corrida amanteigada de sol, uma manhã como outra qualquer. É outubro, novembro, dezembro, e o que me sobra: um par de cuecas azul-piscina, um desenho tosco dum menininho segurando a minguante por um cordão.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Curadoria no Portal Literal

Malta; agora estou de curador no site Portal Literal, e a bagunça corre Agosto fora. Convite da queridíssima Cecilia Giannetti, que acaba de lançar seu "Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi" pela Agir (a dona é fogo na roupa, recomendo a qualquer um que ostente cabeça sobre os ombros).

Nessa primeira edição, contribuições dos bambas Andréa Del Fuego, Tiago Santos Lima e Gabriel Bogossian, além duma galhofa minha chamada "Homem Morrendo Aqui".

Passem lá, que tá bacana.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Helder

Isso é bonito, é do Herberto Helder:

"Era tudo uma máquina com as letras
lá dentro. E eu vinha cantando
com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava nunca mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
de peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava."

Ele imaginava a mãe um imenso atum negro.

Já a minha, é um faisão. Imenso também.
Mas rosa-choque.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

14:00


Supersonismo. Eu estava tomando um chope na Taberna do Leme, lendo “Os Últimos Dias de Paupéria”, e de repente-não mais-que-de-repente um som como nunca ouvi antes, parecia avião perto demais, longo demais, e as coisas como andam pelos ares hoje em dia – bom, tentei localizar a matriz da balbúrdia, mas só via gente apontando. Tentei mirar na direção, ou direções, indicada, ou indicadas, não vi nada, em parte porque o toldo me impedia, mas é recorrência, isso, forçoso admitir. Os amigos sempre dizem: “Veja, um enxame de abelhas africanas!”, e eu: “Onde? Onde?”. Quando dou acordo, se chego a tanto, já passou. Eu nunca vejo nada.
Um jato que me varejou as idéias hoje, enquanto vadiava pela Orla: das duas uma: doze ou sessenta e sete, primavera de dentro ou cortejo de outono, porque, convenhamos, quem pode se dar ao luxo de ficar vadiando pela Orla às treze horas atrás dum boteco amigável? Mas. Nem tanto ao céu nem tanto ao mar, fato é que estou em férias, e já saldei o tributo de uma semana acamado, paracetamol, vitamina C e rios caudolosos de Kleenex. Questão de decência passar a primeira semana de férias com o bigode cheirando a Vick Vaporub. Mas voltando. É esquisito. Dou-me a luxos com os quais não me dou, em absoluto. Por exemplo, eu poderia estar lendo Kierkegaard. Todo a gente poderia estar lendo Kierkegaard agora. Rapaz, seria uma festa.
(Estou esperando dois telefonemas. Um é publicável. Outro não. Não levo muita fé em nenhum. Hoje escrevi carta alucinada ao pai, e em algum momento disse: não levo muita fé em muita coisa). Pára um caminhão do Guaraná Antárctica bem na frente do relógio, não vejo mais horas nem o frio que faz, fico som sono.
(Saliente-se: o espelho no banheiro masculino da Taberna do Leme é tão alto que tive que me pôr em pontas de pés para ajeitar a juba. Denunciem!)

terça-feira, 24 de julho de 2007

01:08


Estranho. O sujeito me ia depenando a cara, e eu percebendo que nos últimos anos, qualquer coisa se dava muito quieta e desapercebida debaixo daquela cerração toda: eu lembrava mais e mais o pai. Ninguém diz. Veio (n)uma abstração de rodoviárias desérticas, rampas em espiral. Se eu queria ver o sol nascer – a primeira vez. Declinando, ao que me lembro, ao que me consta, polidamente, em seguida tomando o rumo dum quarto escuro e frio e totalmente desconhecido. Essa sensação eu reprisei, enquanto saía pra rua, era o Largo São Francisco. Nessa barbearia que há lá pelas adjacências eles ainda usam as cadeironas altas, e a antiguidade da coisa sempre me acalma os nervos, não sei ao certo o motivo. Cruzei o Largo na direção do sobrado onde outro moço antigo à marca do barbiturismo rodava suas fotocopiadoras. Tinha lá deixado o “Introdução ao Cinema Brasileiro” da Isabela, logo antes de ir fazer a barba. Lembro de dizer: vou ali fazer a barba, volto em quinze minutos, o senhor encaderna? Provável que estivesse embutida nisso certa vontade de atiçar a curiosidade do moço. Que ele perguntasse se eu ia tirar tudo, quanto tempo de vida tinha aquele monumento, todos os comos e porquês e ainda algumas impressões gerais sobre o que determina o rosto de um homem. Parte da graça dessas lascas de Rio Antigo é que as regras do jogo são bem diversas, e eu acabei ficando sem perguntas, só uma afirmação que, de tão casual, raiava o dispensável. Agora, ganhando o segundo pavimento daquela construção falida, tive um medo bobo de não ser mais quem tinha sido na vista do moço (na minha própria também), e fantasiei rapidamente que ele me negava a cópia, confiscava as duas Introduções, e me enxotava dali às vassouradas, embusteiro, safado, ladrão, sem-vergonha, e o que eu diria à Bela então? Óbvio que nada disso se passou, mas também não foi em branca nuvem, desci as escadas artilhado de mais duas certezas: que eu parecia mais moço e que de agora em diante meu rosto ficaria bem mais fresco (realmente, o primeiro golpe de vento num queixo melado de loção pós-barba configura prazer quase erótico). Agora me veio uma frase esquisita: “alguns dias são passado”. Não deixa de ser, isso aconteceu há menos de uma semana, e é acontecido, sem negação possível, como todo o resto. Todo mundo faz aniversário, de nascido e de não. Já é a flora facial ameaçando recrudescer, o sujinho que em inglês costuma se dizer “five o´clock shadow”, propriedade inconteste dos paladinos moralmente ambíguos das fitas americanas dos anos 70. Choveu o dia inteiro e acabei de escutar que é hora de você achar o trem e não sentir pavor dos ratos soltos na casa, sua casa (é Clube da Esquina). Lembrando mais e mais o pai, ninguém diz. Uma tia que disse: agora você está de cara para o mundo, o que der e vier. Fico pensando. O que der e vier. Mesmo o reencontro dolorido no botequim de Botafogo. Um bendizer, um maldizer, um dizer de qualquer coisa, que anda tão difícil escutar os outros. Quando penso que essas canções, o pai pode ter cantado pra mãe nos idos d´eu não ter inda advindo, bate uma aflição tão grande. Alguns dias são passado, alguns anos também.